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O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), deu um recado direto ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), para que ele reveja os termos dos dois decretos, de 5 de abril, dedicados a mudar o Novo Marco Legal do Saneamento (Lei 14.026/20) e privilegiar estatais do setor. Se Lula não ceder a esse apelo, o deputado promete levar ao plenário a votação de um projeto de decreto legislativo (PDL) com força para derrubar as iniciativas do petista.
“O clima na Câmara não é de satisfação e a possibilidade de se votar um PDL existe. Mas, sempre antes de levar um PDL adiante, tenho por hábito exaurir a discussão ao máximo, para que o governo possa rever os exageros”, declarou Lira em entrevista ao programa Canal Livre, da TV Bandeirantes, no domingo (16). Para ele, o governo terá que negociar logo mudanças nos decretos para impedir a anulação deles.
O imbróglio representa a primeira queda de braço de Lira com o governo e ocorreu logo após a formação do superbloco partidário – formado por 173 deputados de PP, União Brasil, PDT, PSB, Solidariedade, Avante, Patriota e Cidadania-PSDB – que recolocou o presidente da Câmara como protagonista das negociações na Câmara.
Para André Rosa, professor de Ciência Política do Centro Universitário do Distrito Federal (UDF), o cenário que se desenha obriga o governo a ampliar a gama de benefícios reservada ao grupo de Lira, dentro da lógica do presidencialismo de coalizão. “Por outro lado, há grave risco de o Executivo ter sérios problemas de governabilidade com eventuais disputas por poder dentro do próprio Congresso”, observou.
Meta de universalização dos serviços pode ser adiada
Aprovado em 2020 pelo Congresso, o novo marco visa aumentar a concorrência nos serviços de água e esgoto no país, permitindo que o setor privado invista mais e que existam metas para construção de redes e de melhora da qualidade do atendimento à população. Os decretos de Lula vão na direção contrária e, por isso, geraram resistências no setor e em grupos políticos, além de incentivar questionamentos na Justiça.
Um dos pontos mais polêmicos dos decretos foi o que permite a estatais a prestação de serviços em regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões sem licitação. Antes dos decretos de Lula, 1.113 municípios, com 30 milhões de habitantes, tiveram contratos com companhias de água e esgoto considerados irregulares após a análise da capacidade delas em cumprir os objetivos do marco, bloqueando o acesso aos recursos federais.
A nova regulamentação visa universalizar serviços de água e esgoto até 2033, levando água potável para 99% da população e coletando e tratando esgoto para 90%. Hoje, 100 milhões de brasileiros não têm rede de esgoto e falta água potável para 35 milhões, segundo o Instituto Trata Brasil. Especialistas temem que as flexibilizações praticadas por Lula possam prejudicar as metas de universalização estabelecidas no âmbito do marco legal.
A Associação Brasileira das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (Abcon) informou em nota que os decretos de Lula “muito provavelmente” podem retardar o alcance da universalização dos serviços. A entidade defende a concorrência por meio de processos licitatórios como essencial ao cumprimento das metas de investimento e qualidade.
O Novo ingressou no dia 6 de abril com Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) junto ao Supremo Tribunal Federal (STF) pedindo a suspensão dos decretos. O presidente do partido, Eduardo Ribeiro, afirmou que essa alteração das regras foi “o maior retrocesso proposto pelo governo Lula até agora”.
Segundo Ribeiro, o novo marco destravou os investimentos no setor e estava caminhando bem para a solução de um problema histórico e grave no Brasil. “É inacreditável que tenham coragem de fazer uma coisa dessas”, declarou. Na ação, o Novo argumenta que o governo federal violou preceitos da separação dos Poderes, da dignidade humana, da redução das desigualdades regionais, do meio ambiente, do pacto federativo e do processo licitatório.
Foram apresentados até agora três PDLs que poderão tramitar de forma agregada. O primeiro foi do deputado Kim Kataguiri (União Brasil-SP), sob o argumento de invasão do Planalto sobre seara do Legislativo.
Os partidos de esquerda votaram contra o novo marco e agora tentam reverter a legislação aprovada por Câmara e Senado após amplo debate e projetos em curso que somam R$ 90 bilhões nos próximos 10 anos.
A mudança no marco regulatório é vista como retrocesso no programa de privatizações das companhias estaduais de saneamento, como as do Rio de Janeiro (Cedae), que já produziu efeitos positivos. Em São Paulo, a privatização da Sabesp é promessa de campanha do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos).