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As expressivas derrotas sofridas pelo Planalto em votações, o calendário encurtado pelas eleições deste ano, o avanço dos parlamentares sobre o orçamento federal e, sobretudo, a decisão do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), de assumir o controle da regulamentação da reforma tributária consagraram uma inédita e absoluta independência do Congresso, forjada desde a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Embora o chefe do Executivo tenha avisado na semana passada que intensificará conversas com líderes partidários e exigirá melhor dinâmica dos seus articuladores políticos, analistas ouvidos pela Gazeta do Povo apontam uma perda completa de convergências entre as agendas do governo de esquerda e o Legislativo, especialmente a Câmara, de maioria conservadora.
No retrato acabado da relação entre Executivo e Legislativo a partir deste mês, quando o terceiro mandato de Lula se aproxima da metade, figuram dificuldades crescentes ou até mesmo insolúveis. Os próprios líderes do governo no Congresso deram mostras disso na semana passada após comentarem a “surra” na sessão conjunta, caracterizada pela derrubada de vetos presidenciais.
O senador Randolfe Rodrigues (sem partido-AP) falou que a população elegeu, em 2022, poderes com sinais ideológicos invertidos. Ou seja, um Executivo progressista e um Congresso conservador. Já o deputado José Guimarães (PT-CE) defendeu “chacoalhada geral” na base de apoio parlamentar. Por fim, o senador Jaques Wagner (PT-BA) tentou normalizar os fracassos.
O item mais sentido das perdas em série foi a derrubada de um veto presidencial que na prática elimina as saídas temporárias de presos para visitar familiares e participar de atividades sociais. O Congresso já havia acabado com as “saidinhas”, mas Lula desafiou essa decisão, que agora deve ser questionada na Justiça por entidades da sociedade civil ou partidos políticos que têm interesses similares aos do governo.
A judicialização, inclusive, vinha sendo buscada pelo governo como recurso final para se sair vitorioso no embate com parlamentares, graças a uma parceria com o Supremo Tribunal Federal (STF). Essa postura, contudo, tem gerado ainda mais tensões na República e desgaste para o Planalto com Câmara e Senado.
Governo ainda persegue PL da Censura
Para ampliar o saldo negativo do governo, foi mantido o veto do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) à criminalização de notícias falsas nas eleições. O foco do governo volta então a ser, com apoio do STF, a aprovação do “projeto da censura”, após duas tentativas frustradas de levá-lo a pauta na Câmara.
Mas a defesa do veto de Bolsonaro por 317 dos 513 deputados já foi mais um claro sinal de que a maioria não está disposta a aprovar uma regulação das redes digitais para cercear a liberdade de expressão. A votação encerrou aos gritos de “Lula, ladrão, seu lugar é na prisão!”.
A liberação de emendas e a entrega de cargos foram insuficientes para barganhar apoio parlamentar. Assim, cresce a aposta de que Lula terá de promover uma impactante reforma ministerial no segundo semestre, provavelmente após o pleito municipal, para se aproximar do centrão e permitir a incorporação de novos grupos, em nome da governabilidade.
“O namoro entre Executivo e Legislativo, que tinha tudo para dar certo, caminha para o divórcio litigioso. Como Lula vai se virar até o fim da sua gestão?", questiona João Henrique Hummel Vieira, da Action Consultoria. O cientista político observa que deputados nem hesitam mais em pôr “jabutis” (temas estranhos) em projetos do Planalto e desafiá-lo a vetar.
O perfil atual dos 39 ministros de Lula reflete uma parte do arco das alianças de 2022, que não espelha a real correlação de forças no parlamento. A frente que levou Lula ao segundo turno elegeu 130 deputados, num universo de 513. Ocorre que o presidente, saído de campanha com marcas de gestões petistas e suposta “defesa da democracia”, não acordou um programa comum com forças que o apoiaram no segundo turno, nem com os que o passaram a apoiar após sua vitória. Sem isso, falta compromisso dos aliados com objetivos do governo. Tal situação cobra preços mais altos, levando Lula ao pragmatismo e à rendição.
Pautas de costumes embalam a oposição
Enquanto Lula precisa reunir o restante de seu capital político para recolocar a sua agenda focada em receitas tributárias, ele e seus líderes sabem que devem evitar confrontar o Legislativo em pautas relacionadas a costumes e segurança pública. O viés direitista em votações sobre esses temas tira congressistas próximos de Bolsonaro do isolamento, o que tem beneficiado esse grupo, tão minoritário quanto o da esquerda. No quesito segurança, o senso comum é de que a criminalidade requer endurecimento de penas e maior rigor policial, tal qual defende a “bancada da bala”. Assim qualquer movimentação de projetos nessa linha tende a contrariar o Planalto, a exemplo do fim das “saidinhas” e de mexidas no decreto das armas.
Marcus Deois, diretor da Ética Inteligência Política, avalia que a articulação política do governo com o Congresso será forçada a mudar antes do recesso parlamentar de julho e das eleições de outubro, sendo testada com a negociação do pacote tributário para compensar a desoneração previdenciária dos municípios de até 156 mil habitantes. O debate da desoneração dos 17 setores econômicos não teve a velocidade anunciada após a interferência do STF. “A dificuldade do governo em emplacar as suas prioridades se acentuou também por conta do tempo gasto com votações de medidas emergenciais para o Rio Grande do Sul”, acrescentou.
Em paralelo, o presidente da Câmara orienta o grupo de trabalho que criou para regulamentar a reforma tributária, com objetivo de votar tudo ainda neste semestre. Sua decisão de não nomear relatores trouxe outro recado ao Planalto: Lira resolverá os principais dilemas do novo sistema tributário sobre o consumo, a ser implementada em 2026. Sem hierarquia ou divisão de tarefas, os sete nomeados são vistos com desconfiança pelo governo, que teme falta de consensos. No arranjo feito, interesses de vários setores estão representados por deputados, como construção civil e educação.
Trégua para ajudar o RS não trouxe a paz
Luiz Felipe Freitas, assessor legislativo da Malta Advogados, lembra que a trégua na interação espinhosa de Lira e Alexandre Padilha, ministro das relações institucionais, advinda do desastre gaúcho com as cheias, não foi capaz de garantir horizonte estável. “Haverá novos embates em torno do orçamento federal de 2025, da legislação para plataformas digitais e da regulamentação da reforma tributária”, alerta. Neste último ponto, o mais importante, o governo quer associar o ministro Fernando Haddad (Haddad) à reforma, mas perdeu poder de manobra. “Em junho, temos o início de festividades juninas, com isso diminuição de rito legislativo. Julho tem recesso e, de agosto até outubro, período eleitoral”, salienta.
No acordo de última hora entre Lula e Lira sobre a taxação das importações online até US$ 50, o chefe do Executivo experimentou o seu primeiro revés na linha direta que estabeleceu com os presidentes da Câmara e Senado. Ao negociar pessoalmente a cobrança de imposto de importação, o chefe do Executivo se desgastou por decidir voltar atrás, tentando jogar a impopularidade da medida nas costas do Congresso. Segundo analistas, quando o próprio Lula se senta à mesa para fechar acordos, qualquer impasse na relação com o Congresso tende a tomar o problema ainda maior.
Dificuldades vêm do começo do governo
Daniel Contreira cientista político da BMJ Consultoria, recorda que o governo vem colhendo resultados negativos no Congresso desde a sua primeira medida provisória (MP), para montar a estrutura ministerial, quando ficou clara a composição das forças no parlamento. “Após meses de incerteza, a ministra Marina Silva (Meio Ambiente), internacionalmente festejada, perdeu uma série de competências em sua pasta e o governo pouco pôde fazer. Desde então, tem tido muito sufoco em agendas que não passam, necessariamente, pelo interesse dos presidentes das Casas”, disse.
Derrotas como as sofridas pelo governo são esperadas em um cenário de hipertrofia orçamentária do Congresso e pouca capacidade de barganha dos Ministérios. Nas sessões do Congresso, o Planalto não tem força, sozinho, para pautar e manter vetos. Na Câmara, tem conseguido bons resultados apenas quando converge com a agenda de Lira, como reforma tributária e arcabouço fiscal, por exemplo. Ou quando os atores envolvidos fazem concessões em nome de melhor relacionamento, como no caso do Novo Ensino Médio, graças ao relator Mendonça Filho (União Brasil-BA).
O governo continuará tendo barreiras para aprovar matérias que esbarrem no centrão, que é mais próximo à direita no espectro político. Também é interessante para esse grupo encarecer o apoio ao governo, sem promover alinhamento automático. “Nesse sentido, as ventiladas mudanças na articulação política não conseguiriam resolver, de imediato, um problema do Executivo: o Congresso está mais forte do que nunca”, finaliza.