Entre muitos dos mais de mil réus que foram presos em 9 de janeiro do ano passado, por estarem presentes no acampamento em frente ao Quartel-General do Exército, em Brasília, no dia seguinte à invasão das sedes dos Três Poderes, predominam sentimentos de injustiça, medo, desespero, revolta e tristeza. Muitos se veem pressionados pela família e amigos a aderirem a um acordo de não persecução penal, oferecido pela Procuradoria-Geral da República (PGR), para escapar de uma condenação certa por parte do Supremo Tribunal Federal (STF).
Para se livrar da punição, eles são obrigados a confessar crimes que consideram não terem cometido: associação criminosa e incitação das Forças Armadas à animosidade contra os poderes constitucionais. Os dois delitos foram imputados pela PGR a quem estava no acampamento no dia seguinte ao quebra-quebra. Em caso de condenação, eles levam a pena máxima de 3 anos e 6 meses - patamar, em geral, cumprido no regime aberto, fora da cadeia.
As denúncias contra todos, padronizadas, não descreveram de forma individualizada e precisa como cada uma dessas pessoas teria se associado com o intuito de cometer crimes e incentivado os militares a tomar o poder – nas peças, a PGR juntou fotos de cartazes e faixas de manifestantes não identificados, em frente ao QG, pedindo ajuda ou intervenção das Forças Armadas. Inicialmente, o órgão considerou que não era cabível, nesses casos, um acordo de não persecução penal – pelo qual a pessoa confessa, paga reparação, presta serviços à comunidade e cumpre exigências pactuadas com o Ministério Público – porque ele não seria suficiente para reprovar e prevenir um crime contra o Estado Democrático de Direito.
No segundo semestre de 2023, no entanto, após um apelo da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a PGR mudou de ideia e passou a oferecer o acordo a parte dos réus que cumpriam outros requisitos, entre os quais ter bons antecedentes.
Em dezembro, o ministro Alexandre de Moraes, que conduz os processos no STF, validou o acordo de 38 desses réus, impondo a eles pagamentos que variam de R$ 5 mil a R$ 50 mil, dependendo da capacidade financeira da pessoa, 300 horas de prestação de serviços à comunidade, cancelamento de perfis em redes sociais abertas, compromisso de não se envolver mais em crimes e fazer um curso sobre democracia com duração de 12 horas.
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Advogados avaliam que acordo é penoso
O benefício é se livrar de uma vez do processo e da condenação. Ainda assim, segundo advogados que atuam no caso e conhecem bem os processos, vários réus que aceitaram estão inconformados. “Esse acordo não foi bem um acordo, foi um "termo de adesão". As pessoas não puderam negociar, principalmente na questão da confissão”, diz a advogada Carolina Siebra, que defende quatro réus que não assinaram o acordo, mas conhece outros que aceitaram.
Ela sustenta que essas pessoas não podem ser punidas por um crime impossível – um princípio elementar do Direito Penal. “É como tentar matar uma pessoa com uma pistola d’água. A pessoa até poderia ter a intenção de assassinar, mas quando apertou o gatilho, saiu água. A lei diz que não se pune o crime impossível”, explica.
Ainda assim, as pessoas estão sendo pressionadas a confessar que teriam incitado os militares a dar um golpe por vários fatores. “Há um medo de que apareça alguma surpresa no meio do caminho, diante de tantas ilegalidades já cometidas nessas investigações. Por exemplo, surgir um laudo de que a pessoa estava no Congresso, sendo que não estava lá. De modo que isso leve ela para outro inquérito. Daria outro rebuliço”, diz a advogada.
Para os que foram flagrados dentro do Congresso, Palácio do Planalto ou STF, as denúncias apontam para cinco crimes, mais graves, que já resultaram em penas de 14 a 17 anos de prisão.
Outro problema que ela aponta é a cláusula nona dos acordos, segundo a qual a confissão poderá ser usada pelo Poder Judiciário como “elemento informativo” mesmo em caso de rescisão. Para Siebra, há o temor de que, como as pessoas estão sendo condenadas por um crime de “multidão” – que dispensa a individualização da conduta –, a confissão de alguns de que teria ocorrido incitação a um golpe sirva para condenar outros que não fecharam o acordo.
“Meu receio é a confissão ser usada para condenar outro que não fez acordo. Se partir do pressuposto que a pessoa estava associada, ela também cometeu crime. Se eu confesso, a outra pessoa também fez. Em meio a tantas ilegalidades, não me surpreenderia essa extensão”, afirma a advogada.
Para Bruno Jordano, que defende outra leva de réus, o acordo é muito penoso, considerando que dezenas de pessoas permaneceram presas de forma preventiva – portanto sem condenação – por mais tempo que ficariam na cadeia em caso de condenação. “Pelo tamanho da pena, elas nem poderiam ser submetidas a prisão preventiva, mas foram. Além disso, a multa torna o acordo ainda mais penoso”, diz.
Um dos primeiros a ter o acordo homologado, por exemplo, foi o policial militar de São Paulo Ademilson de Souza Lopes, de 52 anos. Assim que ele foi denunciado, no início do ano, a defesa pediu o acordo, mas a PGR descartou. Depois, quando o órgão aceitou, propôs a confissão e o pagamento de R$ 10 mil. Seus advogados protestaram e, numa contraproposta, disseram que a oferta inicial era “irrazoável, imponderada, punitiva”.
“As condições propostas são mais graves que qualquer pena a que o acusado possa legalmente, ser submetido, mesmo em caso de condenação, uma vez que, o réu, mesmo sem haver cometido qualquer crime, passou dois meses na prisão e segue com monitoramento eletrônico e outras medidas cautelares até o dia de hoje”, afirmou a defesa em setembro.
Argumentou que ele não deveria pagar qualquer reparação, porque, tendo permanecido no QG do Exército e não participando dos atos de vandalismo na praça dos Três Poderes, “em nada contribuiu para as depredações”. “Embora aposentado, é pai de 4 crianças e o único provedor familiar como já demonstrado anteriormente. Assim, não possui condições suficientes para arcar com o valor de R$ 10 mil, tampouco em uma única parcela”.
A única concessão feita pela PGR nesse caso foi dividir o valor em 10 parcelas mensais, “sem juros”.
O acordo de não persecução penal ainda diz que o cumprimento das exigências livra a pessoa do processo penal, mas não de processos cíveis, administrativos e por improbidade administrativa. O que implica que o valor a pagar pode ficar ainda maior.
Jordano entende que, de fato, não é razoável estender efeitos de um acordo penal para outras áreas. Mas, no caso dos réus do 8 de janeiro, seria correto que a União também oferecesse a eles a possibilidade de um acordo que não implique a responsabilização civil, ainda mais sem um processo que permita ampla defesa e contraditório.
Quanto ao acordo em si, o advogado avalia que é um “remédio muito amargo”.
“Essas pessoas que optam por fazer o acordo podem ter sentimento de injustiça, e isso pode se aguçar ao longo do tempo, mas é totalmente compreensível que estejam aderindo, porque vivem situação de excepcionalidade, cumprindo pena por crime que não cometeram, em que há probabilidade de condenação injusta. Os processos já são excepcionais. Há uma pressão psicológica para que as pessoas venham a anuir. Com o passar do tempo, podem sentir arrependimento. Mesmo porque, ainda que viessem a ser condenadas, a pena não chegaria a tempo tão elevado de prisão”, diz o advogado.
“Existe uma situação de desespero de familiares e de réus, que querem logo sair dessa condição. Primeiro que não concordaram em assumir o risco de estar ali. Saíram para uma finalidade, se manifestar, acabaram presas e submetidas a pena antecipada, sem que tivessem aderido àquela ideia criminosa. Ao serem submetidas a processo tão penoso, entraram em desespero, as pessoas e suas famílias não estavam preparadas, e daí o interesse em sair de imediato dessa situação. Já outras entendem que vivem uma ilegalidade, e não vão concordar com isso”, diz ele, referindo-se, por último, às que optaram por não aceitar o acordo.
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