A privatização do Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro) não é a única controvérsia envolvendo a estatal de Tecnologia da Informação (TI), que presta serviços para os órgãos governamentais e detém informações sensíveis dos brasileiros. Nos últimos meses, empresas privadas do setor vêm reclamando do que seria uma "invasão" do mercado por parte do Serpro.
A principal queixa diz respeito ao aumento no número de clientes privados da estatal. No início de setembro, o presidente da empresa, Caio Paes de Andrade, disse à imprensa que o Serpro quer aumentar em quase quatro vezes o número de clientes do setor privado até o fim do ano que vem. Segundo os dados fornecidos por Andrade em conversa com a agência "Reuters", a estatal deu um salto no número de clientes privados, que aumentou em 800 nos últimos meses, alcançando 1,3 mil parcerias do tipo em 2019.
Ítalo Nogueira, presidente da Associação das Empresas Brasileiras de Tecnologia da Informação (Assespro), diz que o setor privado não quer uma reserva de mercado. As queixas em relação à expansão do Serpro ocorrem porque a competição, na visão dele, é desleal.
"O problema é que o Serpro é uma empresa mantida com recursos públicos que está brigando por mercado. Não faz sentido uma estatal de tecnologia disputar os clientes com empresas privadas, que estão recolhendo impostos justamente para manter essa estatal", afirma Nogueira. "É preocupante e assustador que um governo que se diz liberal tenha uma empresa com um posicionamento desses", completa.
Outra controvérsia diz respeito a uma parceria que firmada entre o Serpro e o Google. Segundo o presidente da Assespro, a estatal estaria sendo intermediária para que a multinacional feche contratos de serviços para órgãos governamentais sem licitação.
"Competição acontece nos limites legais", diz representante do Serpro
A Gazeta do Povo questionou o Serpro a respeito da existência de contratos desse tipo com o Google, mas a estatal não respondeu essa pergunta. A multinacional, por sua vez, informou que o Serpro tem um contrato assinado com a RW3 Tecnologia, "que é uma parceira de Google Cloud".
A Gazeta do Povo enviou um e-mail à RW3, pedindo informações sobre o contrato, mas não obteve retorno até o fechamento deste texto. A reportagem também tentou localizar o contrato nos canais de transparência do Serpro e do governo federal, sem sucesso.
Por meio da Lei de Acesso à Informação, após a publicação da primeira versão deste texto, a reportagem obteve acesso ao contrato firmado entre o Serpro e a RW3 - nome fantasia para a empresa chamada RJR Comércio e Serviços de Informática. No valor de R$ 10,5 milhões, o contrato prevê a prestação de "serviços de infraestrutura híbrida de comunicação corporativa e gerenciamento integrado de multiusuários", incluindo serviços semelhantes aos oferecidos pela plataforma Google Drive.
Em contraponto às outras reclamações das empresas do setor, o Serpro apontou que a ampliação da carteira de clientes privados permitiu que a estatal saísse de dificuldades econômicas e se tornasse lucrativa. Tudo isso em relativamente pouco tempo: em 2015, a estatal teve prejuízo de cerca de R$ 350 milhões; três anos depois, registrou lucro líquido de R$ 459 milhões.
"Uma maior inserção no mercado contribuiu, em grande parte, para essa recuperação", defende Jacimar Gomes Ferreira, superintendente de relacionamento com novos clientes da estatal.
De acordo com Ferreira, os serviços oferecidos para os clientes privados incluem certificação digital e soluções de checagem e validação de dados. Entre os novos clientes estão os aplicativos de transporte Uber e 99, que firmaram contrato com o Serpro para garantir a identidade de seus motoristas.
"A competição acontece estritamente nos limites legais, e a atuação se dá como a de qualquer outra empresa inserida no mercado. Esses serviços de checagem e validação são todos autorizados previamente, e a empresa nunca divulga nenhum dado pessoal sigiloso", completa Ferreira.
O que faz o Serpro
Fundado em 1964, o Serpro é responsável por formular soluções de tecnologia e gerir dados de vários órgãos governamentais.
É atribuição da estatal, por exemplo, cuidar do software que processa a declaração do Imposto de Renda dos contribuintes e do programa que processa as importações e exportações do país. Também estão sob guarda da empresa dados sobre infrações de trânsito, carteiras de habilitação e passaportes.
Tanto o Serpro quanto a Dataprev – outra estatal de TI do governo federal – estão na lista de privatizações da gestão de Jair Bolsonaro (PSL). Em nota enviada à Gazeta do Povo, o Ministério da Economia explicou que o entendimento do governo é de que "a manutenção de dados da população sob guarda dessas empresas não garante sua proteção mais do que sob guarda de empresas privadas".