“Ato ou instância de seguir alguém furtivamente (...), demorar-se perto de alguém, em geral de forma fraudulenta, com o propósito de importunar ou assediar essa pessoa, ou de cometer outro crime associado, como lesão corporal ou psicológica”. É assim que o Black's Law Dictionary, tradicional dicionário jurídico norte-americano, define o stalking, prática que pode se tornar crime em breve no Brasil, já que, na última década, mais de uma dezena de projetos de lei sobre o tema foram apresentados no Congresso Nacional.
Nos projetos de lei brasileiros, o stalking recebe diversos nomes, do original até “perseguição insidiosa ou obsessiva”, “intimidação sistemática”, “perturbação da tranquilidade”, entre outros. De forma geral, entretanto, os textos têm o mesmo objetivo: coibir a perseguição ou assédio reiterado a uma pessoa, seja por meio físico ou eletrônico (o chamado cyberstalking), de forma a lhe causar medo ou prejudicar sua liberdade.
A maioria das propostas se encontra apensada ao projeto de lei (PL) 1.369/2019, da senadora Leila Barros (PSB-DF), aprovado na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado Federal em agosto de 2019 e que agora aguarda apreciação na Câmara dos Deputados. Há, ainda, o PL 1.414/2019, da senadora Rose de Freitas (Podemos-ES), que no momento espera análise por parte da CCJ da Câmara, e o PL 1.020/2019, do deputado federal Fábio Trad (PSD-MS).
Tanto o projeto de Leila quanto o de Trad buscam incluir a prática no Código Penal. Para Leila, o stalking criminoso deve ser considerado conduta passível de detenção de seis meses a dois anos, ou de multa, sendo configurada sua forma qualificada quando o agente é ou foi íntimo da vítima – nesses casos, a detenção poderia variar de um a três anos. Já Trad objetiva uma condenação mais severa. Na visão do deputado, o stalking renderia de dois a quatro anos de reclusão para o infrator, além de multa. Na forma qualificada, o tempo de prisão poderia chegar a cinco anos.
O PL 1.414/2019, da senadora Rose de Freitas, por sua vez, propõe alteração no artigo 65 do Decreto-Lei 3.688/1941, conhecido como Lei das Contravenções Penais. Para ela, a nova redação deve ser: “molestar alguém ou perturbar-lhe a tranquilidade, por acinte ou por motivo reprovável, direta ou indiretamente, continuada ou episodicamente, com o uso de quaisquer meios, inclusive os virtuais: Pena – prisão simples, de dois a 3 três anos”.
O advogado Gustavo Scandelari, do Núcleo de Direito Criminal do Escritório Professor René Dotti, defende a necessidade de se formular uma nova legislação capaz de cuidar dos casos de stalking. “Tem várias condutas que presenciamos que poderiam ser enquadradas no conceito de stalking e que hoje não sofrem nenhuma repressão penal por parte do Estado, ou o que é previsto é muito fraco. São condutas que geram extremo constrangimento às pessoas e o fato de serem consideradas apenas contravenção soa como uma resposta estatal muito fraca”, diz.
Apesar de acreditar que a criminalização de condutas não é a medida mais adequada para tentar resolver qualquer problema, Marion Bach, integrante da Comissão de Estudos sobre Violência de Gênero da OAB-PR, opina que a elaboração de leis mais modernas relativas à perseguição reiterada representa um avanço.
“Isso porque existem situações cotidianas graves de perseguição, que afetam significativamente a vida e o estado mental da pessoa perseguida, e que acabam por não se amoldar a nenhum outro crime já existente, como ameaça, lesão corporal, injúria, para citar alguns”, afirma a advogada.
Como ocorre hoje
É necessária essa atualização da lei penal porque a legislação vigente ou não consegue abarcar todos os casos de stalking ou prevê punições ínfimas. Quando o agressor é alguém da família ou uma pessoa com quem a vítima se relaciona ou já se relacionou intimamente, é possível recorrer à Lei Maria da Penha (11.340/2006) e solicitar que seja concedida medida protetiva, que tem como objetivo amparar mulheres vítimas de violência doméstica ou familiar.
Professor de Processo Penal na Universidade Federal do Paraná (UFPR), Guilherme Lucchesi lembra, contudo, que nem sempre o stalking é praticado por alguém com quem a vítima teve uma relação íntima de afeto – e que, ainda que sejam a maioria, nem sempre os atingidos são mulheres.
“Vamos lidar, por exemplo, com o caso de celebridades. Aqui, é possível, sim, pensar num interesse a ser protegido pelo Direito Penal. E aí é preciso que as proposições sejam adequadas não só com a ideia do stalking físico, mas também as figuras de cyberstalking”, afirma.
Quando o stalker é um desconhecido, portanto, a situação se complica. Hoje, o ato previsto em lei que mais se aproxima da prática é uma contravenção penal, prevista no Decreto-lei 3.688/1941 – alvo, justamente, do projeto da senadora Rose –, que prevê que “molestar alguém ou perturbar-lhe a tranquilidade, por acinte ou por motivo reprovável”, é passível de prisão simples, de 15 dias a dois meses, ou multa. Em relação à Lei das Contravenções Penais, Lucchesi diz ter uma opinião forte.
“Eu acho que essa lei não deveria mais existir, pois boa parte do que ela prevê está desatualizado, fora de sintonia com o que se espera do Direito Penal Contemporâneo. São condutas que preveem penas muito baixas, e as previsões relevantes deveriam ser transformadas em crime”, explica, citando como exemplo o crime de importunação sexual (artigo 215-A do Código Penal), criado em 2018 porque a antiga previsão da Lei das Contravenções Penais se mostrava insuficiente.
Scandelari concorda que o stalking não deve continuar sendo tratado como mera contravenção penal. Na opinião do advogado, uma punição adequada para os casos deveria variar entre dois e cinco anos de prisão.
“[Com essa pena] É crime que não vai poder ser processado no Juizado Especial Criminal [que julga crimes com penas máximas não superiores a dois anos], que oferece muitos benefícios para os infratores, como conciliação, transação penal, entre outros. A pena, então, não deve ser baixa. Deve ser considerado um crime de, no mínimo, gravidade média”, afirma.
Mulheres são maioria das vítimas de stalking
Ainda que homens e mulheres estejam sujeitos a sofrer com o stalking, a maioria das vítimas é do sexo feminino. A nível nacional ainda não há levantamentos a respeito, mas nos Estados Unidos, onde a discussão sobre o assunto é mais avançada, o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC, na sigla original), agência do Departamento de Saúde e Serviços Humanos do país, afirma que uma em cada seis mulheres e um em cada 17 homens já foram alvos de stalking em algum momento de suas vidas.
Para Marion Bach, a urgência em legislar o tema vai ao encontro da conscientização mais recente que a sociedade brasileira vem tendo a respeito do combate à violência contra a mulher. Tem-se como exemplo a Lei 13.104/15, a Lei do Feminicídio, e a já citada criação do crime de importunação sexual.
Segundo o CDC, na maioria dos casos o stalking é praticado por alguém que a vítima conhece ou com quem manteve relacionamento íntimo. A prática se manifesta, de acordo com o órgão, em forma de telefonemas ou mensagens de texto ameaçadoras, espionagens e até mesmo pelo envio de presentes ou cartões indesejados. Também é comum que o agressor apareça com frequência na casa ou trabalho da vítima sem avisar.
A organização aponta que as consequências trazidas pelo stalking são devastadoras. Enquanto perseguidas, as vítimas ouvidas pelo CDC relataram sentir muito medo e acreditar que elas mesmas ou alguém próximo poderia ser agredido ou morto pelo criminosos. Cerca de 68% das mulheres e 70% dos homens sofreram ameaças ligadas à sua integridade física, enquanto metade das vítimas (51% dos homens e 52% das mulheres) relataram ter sofrido danos materiais decorrentes do stalking.
Problemas operacionais
Uma das questões que se levanta quanto à eficácia de uma lei sobre o tema diz respeito à investigação, devido à conhecida deficiência da inteligência policial brasileira. Para Davi Tangerino, professor de Direito e Processo Penal na Fundação Getúlio Vargas em São Paulo (FGV-SP), não haverá capacidade investigativa suficiente para dar conta dos casos de stalking criminoso.
“Porque investimos pouco em inteligência. Do ponto de vista prático, o que provavelmente vai acontecer é que um outro caso midiático vai ser apurado. Mas o grosso dos casos, do cidadão comum, esses vão ficar sem resposta”, opina.
Guilherme Lucchesi acredita que uma maior dificuldade probatória deve ocorrer nos casos de perseguição física. Quanto ao cyberstalking, o professor da UFPR afirma que tudo o que ocorre no ambiente virtual deixa rastros e, com a ajuda de um profissional capacitado, é possível encontrar os rastros deixados pelo stalker.
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