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A decisão da ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal (STF), de autorizar a abertura de um inquérito contra o presidente Jair Bolsonaro por suposto crime de prevaricação tem capacidade de causar desgaste político ao presidente. Mas há desconfiança sobre os efeitos práticos que essa investigação pode gerar.
Na manhã da sexta-feira (2), a Procuradoria-Geral da República (PGR) pediu ao STF autorização para realizar a investigação, o que foi concedido na noite do mesmo dia. Ao abrir o pedido, o Ministério Público Federal acabou cedendo à pressão feita pela ministra Weber, que cobrara uma resposta da PGR a uma notícia-crime apresentada por três senadores. Os parlamentares Randolfe Rodrigues (Rede-AP), Fabiano Contarato (Rede-ES) e Jorge Kajuru (Cidadania-GO) apresentaram um pedido de investigação contra Bolsonaro.
O presidente da República é acusado de não ter feito nada após receber uma denúncia do deputado federal Luís Miranda (DEM-DF), que acusou a existência de um esquema no Ministério da Saúde para superfaturar vacinas e privilegiar a compra do imunizante Covaxin. De acordo com o relatado por Miranda, e que foi reforçado pelos senadores na denúncia-crime, Bolsonaro disse que acionaria a Polícia Federal para investigar o ocorrido. Isso, entretanto, não aconteceu.
Bolsonaro não comentou o assunto em suas redes sociais. Nesta sexta-feira (2), o presidente utilizou o seu perfil no Twitter para celebrar uma apreensão de drogas em Santa Catarina e para apresentar um cachorro que ganhou de presente de um criador da raça "rastreador brasileiro".
Entre os apoiadores do presidente, o assunto também não ganhou muito destaque. O deputado federal Bibo Nunes (PSL-RS) disse que a abertura de inquérito não deve motivar alterações nas estratégias dos bolsonaristas, tanto no governo quanto no Legislativo. "É vida que segue. O desgaste, quem vai ter, é o Ministério Público", afirmou. Segundo o parlamentar, a acusação contra Bolsonaro "não tem fundamento". "Não é o momento de se preocupar com isso", disse.
CPI fica eufórica com pedido de inquérito da PGR
Entre os integrantes da CPI da Covid que fazem oposição a Bolsonaro, a decisão foi vista com celebração — e também como resultado dos trabalhos da própria comissão.
"Nossa notícia-crime, protocolada em conjunto com os senadores
Contarato e Kajuru, abriu caminho para que hoje a ministra Rosa Weber determinasse a abertura da investigação. Grande dia!", escreveu em suas redes sociais Randolfe Rodrigues, vice-presidente da CPI.
Outro autor da notícia-crime, Fabiano Contarato publicou: "Antes tarde do que nunca. O chefe do MPF não pode ser omisso nem parecer advogado do governo". Ele escreveu também que "a CPI não pode vacilar no foco da investigação", e cobrou que as apurações relacionadas ao caso Covaxin fiquem na prioridade do colegiado.
O presidente da CPI, Omar Aziz (PSD-AM), afirmou nesta sexta em entrevista ao jornal O Globo que “é um fato” a prevaricação de Bolsonaro. “Uma coisa que deixa o presidente com urticária é a gente mostrar que o governo dele é corrupto também. Estamos com fortes indícios disso”, afirmou Aziz.
Ao longo dos mais de dois meses da CPI, a comissão foi marcada por reviravoltas em suas prioridades. O grupo teve como foco questões como o "tratamento precoce"; a crise no Amazonas, que registrou centenas de mortes por Covid-19 em janeiro; a existência de um suposto "gabinete paralelo", que aconselharia Bolsonaro de modo informal em temas relacionados à pandemia; e também indicou que poderia centrar fogo em denúncias que citam governadores estaduais e prefeitos, linha de investigação defendida pelos bolsonaristas. “O nosso foco agora é por que o Brasil não teve vacina", disse Aziz ao O Globo.
Histórico e sucessão na PGR e no STF freiam euforia oposicionista
Fora dos holofotes, porém, a euforia com a decisão não é consenso. Um senador de oposição que compõe a CPI e falou de modo reservado com a Gazeta do Povo disse não acreditar que o inquérito tenha algum resultado prático.
"Eu tenho um certo ceticismo. Estamos vivendo momento de sucessão na PGR e no STF. E a gente sabe que na PGR existem muitos interesses. Por isso, acredito que nada deve avançar muito", disse o parlamentar.
As sucessões a que o senador se refere são as do cargo de procurador-geral da República e de uma das cadeiras de ministro do STF. A vaga no STF se abre no próximo dia 12, quando Marco Aurélio Mello completa 75 anos de idade e, por isso, será compulsoriamente aposentado, conforme determina a lei. Já a da PGR terá a vacância em setembro, quando se encerra o mandato de dois anos de Augusto Aras no cargo.
O próprio Aras é cotado para as duas funções — a escolha para os postos é de livre iniciativa do presidente da República. No caso da PGR, há uma tradição de a categoria elaborar uma lista tríplice com os nomes mais votados internamente para o posto, mas o chefe do Executivo não é obrigado a segui-la. Em 2019, Aras não estava na relação e foi indicado por Bolsonaro.
Outro componente que cria ceticismos na oposição é o fato de que um eventual inquérito pode permanecer paralisado por meses e, assim, acabar esquecido pelo ambiente político. Um caso concreto que exemplifica bem isso é a investigação aberta ainda no ano passado na esteira das denúncias do ex-ministro Sergio Moro, que disse que Bolsonaro exercia influência política sobre a Polícia Federal. O processo não teve tramitação significativa nos últimos meses.
Qual é o passo a passo da investigação
A solicitação de abertura do inquérito foi apenas o primeiro passo de uma longa lista de etapas necessárias para que a investigação apresente resultados.
O segundo passo foi a autorização concedida pela ministra Weber. Com isso, a PGR pode executar as investigações, com etapas como análise de documentos e arguição de testemunhas. Terminada esta parte, a PGR decide se o que foi coletado é suficiente ou não para a continuidade do processo. A opção pela continuidade levaria a PGR a apresentar uma denúncia ao STF; e, se o Supremo aceitar a denúncia, entra em ação a parte mais política de todo o processo.
Para que um presidente seja julgado criminalmente pelo STF é necessária a autorização da Câmara dos Deputados. Que é concedida apenas se dois terços dos parlamentares votarem a favor do pedido. Em 2017, a Câmara rejeitou duas denúncias feitas pela PGR que tinham o então presidente Michel Temer como alvo.
Se houver o aval da Câmara, o processo pode ser aberto no STF e o presidente se torna réu, com espaço para ampla defesa.