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A decisão do ministro Celso de Mello, que obriga o presidente Jair Bolsonaro a prestar depoimento pessoalmente no inquérito que apura uma suposta interferência política na Polícia Federal (PF), ocasionou uma saia justa entre os integrantes do Supremo Tribunal Federal (STF). Eles buscam uma saída honrosa para derrubar a decisão sem constranger o decano da Suprema Corte.
Na semana passada, Mello negou pedido do presidente para que ele prestasse depoimento por escrito à Polícia Federal na investigação que apura se Bolsonaro tentou interferir no comando da PF. O inquérito foi instaurado após acusações do ex-ministro da Justiça Sergio Moro. Bolsonaro nega qualquer tentativa de interferência na PF.
Entretanto, nesta quinta-feira (17), o ministro Marco Aurélio Mello atendeu parcialmente a recurso impetrado pela Advocacia-Geral da União (AGU) e decidiu adiar o depoimento do presidente e remeter o caso ao plenário da Corte. A oitiva deveria ocorrer entre os dias 21 e 23 de setembro. A petição da AGU foi encaminhada a Marco Aurélio porque Celso está de licença médica até o próximo dia 26.
Em seu despacho, Marco Aurélio não adentrou no mérito da decisão do colega, mas recomendou que o caso fosse analisado pelo plenário da Suprema Corte. “Observem a organicidade do Direito Processual. Mostra-se inadequada a atuação individual objetivando aferir o acerto, ou não, de entendimento do relator. Avesso à autofagia, cabe submeter ao Pleno o agravo formalizado, para uniformização do entendimento”, disse o ministro na decisão.
Nos bastidores do STF, a manifestação de Marco Aurélio foi classificada como “perspicaz”. Ao mesmo tempo, ela demonstrou o desconforto dos demais ministros com o despacho originário de Celso, mas evitou que ele ficasse exposto ao desgaste de ser desautorizado por um colega em uma decisão monocrática, ainda mais nessa reta final de carreira. Celso de Mello se aposenta em novembro.
Articulação para evitar um desgaste maior a Celso e ao STF
O presidente do STF, Luiz Fux, sinalizou a colegas da Suprema Corte que vai esperar o ministro Celso de Mello se manifestar para pautar ou não o caso em plenário. A auxiliares, Fux admitiu que a melhor solução nesse momento, para o bem do princípio da separação entre os Três Poderes, seria que o próprio ministro Celso de Mello recuasse de sua posição originária e permitisse o depoimento do presidente por escrito. Agora, integrantes do STF têm parafraseado uma frase que Marco Aurélio costuma dizer em julgamentos importantes: “Quem pariu Mateus que o embale”.
Do outro lado, uma corrente minoritária dos ministros acredita que colocar o caso em plenário acabaria de vez com a polêmica. A tendência, neste momento, é que a maioria dos ministros derrube a decisão de Celso. Mas por um placar apertado. Além disso, Fux não pretende pautar esse processo sem a participação do ministro Celso de Mello.
Até o momento, os ministros Ricardo Lewandowski, Dias Toffoli e Gilmar Mendes são apontados como contrários à decisão do decano do Supremo. Além deles, Edson Fachin, relator da Lava Jato, e Luís Roberto Barroso já concederam decisões semelhantes às de Celso e são vistos como votos divergentes do decano.
Em 2017, em decisões que beneficiaram o ex-presidente Michel Temer (MDB), Fachin e Barroso autorizaram que o então chefe do poder Executivo prestasse depoimento por escrito, embora fosse investigado em ambos os casos. Barroso autorizou depoimento no chamado inquérito dos portos; Fachin, na investigação relacionada à delação da JBS. As duas decisões foram baseadas no artigo 221 do Código de Processo Penal (CPP), segundo o qual autoridades com foro “serão inquiridos em local, dia e hora previamente ajustados entre eles e o juiz” e que, no caso dos presidentes da República, da Câmara e Senado, eles têm a opção de prestar esclarecimentos por escrito.
Do outro lado, apenas os ministros Alexandre de Moraes e o presidente do STF, Luiz Fux, além da ministra Cármen Lúcia, são vistos como favoráveis à medida. Moraes, não necessariamente pelo mérito, mas pela sua relação de respeito e amizade com Celso de Mello. E Cármen Lúcia pelo fato de integrar a ala punitivista do STF.
A situação do ministro Fux é vista nos bastidores do STF como a mais delicada entre os 11 ministros. Como um “simples ministro”, ele endossa a posição de Celso; como presidente de tribunal, não. Há uma pressão interna para que Fux, caso o recurso chegue a plenário, mantenha postura semelhante à de Fachin e Barroso. Isso em nome da estabilidade institucional que ele pregou na sua posse como presidente da Suprema Corte.
Celso de Mello é criticado por ter se “contaminado pelo processo”
Internamente, o ministro Celso de Mello tem sido criticado pelo fato de se deixar “contaminar pelo processo” ou de fazer do inquérito que investiga a suposta interferência na PF como sua “despedida de luxo” do Supremo.
Essa postura pode ter efeito contrário. Entre assessores e membros do Supremo, a decisão de Celso de tentar obrigar o presidente da República a prestar depoimento pessoalmente foi comparada ao despacho do ministro Marco Aurélio, de 2016, quando ele determinou o afastamento do então presidente do Senado, Renan Calheiros (MDB-AL), da função.
Na época, Marco Aurélio entendeu que Renan não poderia ocupar cargo que o deixasse na linha sucessória após tornar-se réu de uma ação penal. Renan não somente não deixou o cargo, como o plenário do STF derrubou a decisão de Marco Aurélio, sob elogios ao ministro, mas com um claro constrangimento entre os membros da Corte.
No despacho que obrigou Bolsonaro a prestar depoimento, Celso de Mello ressaltou: “Mostra-se destituída de qualquer pertinência a equivocada afirmação de que se aplicaria ao presidente da República, no caso de estar sendo investigado, a prerrogativa que a legislação processual lhe reconhece na hipótese, única e singular, em que ostentar a figura de testemunha ou de vítima”. Mas, entre membros do STF, os ministros alegam que Celso fez uma interpretação heterodoxa do CPP.
Além disso, em sua decisão, Celso ignorou manifestação da Procuradoria-Geral da República (PGR) que ressaltou o fato de que Bolsonaro, por ser chefe de Estado, tem direito a prestar depoimento por escrito. O procurador-geral da República, Augusto Aras, utilizou-se exatamente da decisão de Fachin relacionada ao inquérito da JBS para embasar a sua manifestação em favor do depoimento escrito do presidente da República.