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O Supremo Tribunal Federal (STF) começou a julgar nesta quarta-feira (3) se mudanças aprovadas no ano passado na Lei de Improbidade Administrativa, que dificultam a investigação e punição do mau uso de recursos públicos, podem retroagir e beneficiar políticos e gestores já condenados no passado. Entre os possíveis beneficiários da mudança estariam, por exemplo, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e os ex-governadores José Roberto Arruda (PL-DF) e Geraldo Alckmin (PSB-SP) – uma decisão favorável eliminaria obstáculos às suas candidaturas neste ano ou o risco de perderem os cargos posteriormente, se eleitos.
Na ação julgada, os ministros do STF vão discutir se, em processos que tramitavam antes da mudança da lei, a condenação deve ficar restrita aos casos de dolo (intenção) para enriquecimento ilícito, prejuízo aos cofres públicos ou violação de princípios da administração pública. Tratam-se das três categorias de atos de improbidade previstos na lei e que acarretam punições que incluem ressarcimento, multas, perda da função pública e suspensão dos direitos políticos.
Em 2021, além de aprovar alterações que só permitem a condenação por conduta dolosa, o Congresso também reduziu os prazos de investigação (limitada a no máximo dois anos) e de prescrição (8 anos a partir do fato investigado e 4 anos em cada instância judicial). As mudanças valeriam só para casos futuros, mas centenas de réus pedem na Justiça que valha também para trás. A decisão do STF terá repercussão geral e deverá ser aplicada a todos os casos.
A sessão desta quarta foi dedicada às sustentações orais de advogados que representam entidades interessadas no assunto: associações de membros do Ministério Público e de prefeitos, que estão em lados opostos; do procurador-geral da República, Augusto Aras, contrário à retroatividade; e ao início do voto do relator, Alexandre de Moraes, que fez apenas uma breve introdução sobre o tema.
O julgamento continua nesta quinta-feira (4), com o término de seu voto e os votos dos outros dez ministros da Corte. Projeções de bastidores indicam que o placar pode ficar apertado, e não está descartado um pedido de vista, que deixaria vários casos importantes no limbo, sem uma definição certa. O julgamento interessa à classe política porque condenações passadas confirmadas em segunda instância implicam em inelegibilidade pela Lei da Ficha Limpa.
A posição do Ministério Público contra a retroatividade da nova lei
Em sua sustentação, o chefe do Ministério Público, Augusto Aras, disse que a jurisprudência vem evoluindo nos últimos anos, antes mesmo da mudança da lei, para permitir a condenação apenas em casos de dolo. Ainda assim, defendeu a possibilidade de condenações por prejuízo aos cofres públicos quando comprovado “erro grosseiro”, “manifesto, evidente e inescusável”, ainda que sem intenção de lesar o erário. Disse que o próprio STF reconheceu essa possiblidade em diversas ações relacionadas ao combate à pandemia de Covid.
Depois, afirmou que uma decisão que aplicasse a nova lei de forma retroativa, de forma generalizada, implicaria na absolvição de condenados por esses atos. “O combate à corrupção é uma obrigação constitucional que decorre do princípio republicano e do Estado Democrático de Direito. A coibição e punição dos atos de improbidade administrativa é uma parte importante do cumprimento desse dever constitucional, que materializa também a moralidade e a impessoalidade no exercício das funções e cargos públicos”, afirmou Aras.
Sobre a prescrição, ele defendeu a aplicação de uma “transição”, “preservando atos de persecução regularmente praticados antes da alteração legislativa” – esse é considerado um dos maiores riscos de eventual retroatividade, uma vez que muitas ações tramitaram em prazo superior aos 8 anos a partir do fato, ou de 4 anos entre uma instância e outra. Aras disse que essas ações seguiram a lei vigente à época e que não houve inércia do MP nesses casos.
“A aplicação retroativa dos novos prazos de prescrição, inclusive a prescrição intercorrente, quebra a segurança jurídica, viola o ato jurídico perfeito, e implica anistia transversa de atos de improbidade objeto de persecução regular pelo Estado”, disse o procurador-geral.
Além dele, falaram outros diversos representantes do MP. O procurador-geral da Justiça de São Paulo, Mário Luiz Sarrubbo, disse que milhares de casos no estado poderiam ser atingidos com a retroatividade. “2.798 condenações com trânsito em julgado desde 2011 serão potencialmente também atingidas, das quais 1.346 tiveram como sanção a perda dos cargos ou suspensão dos direitos políticos”, alertou.
A promotora de Goiás Fabiana do Prado rebateu o argumento de que a nova lei impede uma boa administração – prefeitos e gestores reclamam de engessamento em razão do risco de processos por tipos de ilícitos descritos de forma genérica na antiga lei. Depois, defendeu a perda da função e suspensão de direitos políticos dos condenados.
“Todos nós passamos uma parcela da vida sem exercer direitos políticos ou exercê-los em plenitude e nunca se cogitou que isso representa violação à dignidade da pessoa humana. A Lei de Improbidade Administrativa precisava sim de aperfeiçoamentos para segurança do MP, como principal agente que atua, para segurança dos investigados, mas não é possível que a pretexto de aperfeiçoá-la, ela seja aniquilada”, afirmou.
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O que disseram representantes de prefeitos sobre o tema
No julgamento, advogados que representam prefeitos reafirmaram a intenção do Congresso, no ano passado, de não puni-los em razão de decisões que só posteriormente, anos depois, fossem consideradas irregulares ou malsucedidas na gestão dos recursos públicos.
“O que está em jogo aqui é o apagão das canetas. É o fato de que se meus filhos quiserem trabalhar na administração, eu deserdo. Ninguém quer ter filho trabalhando na administração pública, porque tudo que se move vira improbidade. Não tem prefeito que não tenha saído com ação de improbidade”, disse Georghio Tomelin, da Associação Brasileira de Municípios.
O advogado Saul Tourinho Leal, da Frente Nacional dos Prefeitos, criticou decisões que bloqueiam bens dos acusados e suspendem seus direitos políticos. “Numa democracia, os bens particulares importam e uma condenação por improbidade os tornam indisponíveis. E claro que toca a esfera da liberdade, a liberdade política, relativa a tomar parte nas coisas do poder. Liberdade política é ter a condição de tomar parte nos assuntos do poder.”
O que disse Alexandre de Moraes sobre a Lei de Improbidade
Relator da ação, Alexandre de Moraes não indicou se votará pela retroatividade na introdução do voto. Inicialmente, fez um breve histórico da lei, que completou 30 anos e foi sancionada pelo ex-presidente Fernando Collor como resposta a protestos contra a corrupção na época de seu governo.
Depois, defendeu a atuação do MP, autor da maioria das ações de improbidade. “Em São Paulo, há 63% de condenações, face a 36% de improcedências. Não é verdade que entram com ações de baciada. É trabalho realizado de forma séria, não só pelo MP de São Paulo, mas de todos os estados e também pelo MP Federal”, afirmou o ministro.
Por outro lado, reconheceu que mais da metade das ações acusam gestores de violação de princípios da administração, como honestidade, imparcialidade e legalidade. “Aqui, há grande reclamação”, disse, em referência às descrições mais genéricas de condutas que levam a punições.
O ministro também disse que os tribunais precisam se aparelhar melhor para combater a improbidade, reduzindo o tempo de tramitação. Além disso, reconheceu que várias ações ganham força somente na época das eleições, pelo potencial de retirar da disputa os acusados. “Um dos grandes problemas é que ações contra detentores de mandatos tenderiam a adormecer, e só ganhavam ritmo quando eles se tornavam candidatos”, afirmou.
Políticos que podem se beneficiar da retroatividade
Um dos principais interessados na decisão é o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que, em junho, pediu prioridade no julgamento ao presidente do STF, Luiz Fux, numa reunião com outros líderes partidários. Lira foi condenado duas vezes por improbidade, acusado de desviar recursos da Assembleia Legislativa de Alagoas. Uma das condenações, por quitação de empréstimos pessoais com dinheiro público, foi confirmada em 2016 na segunda instância e, por isso, ele deveria ter ficado inelegível pela Lei da Ficha Limpa.
Em 2018, no entanto, Lira conseguiu se candidatar a deputado, com uma decisão liminar do Tribunal Regional Eleitoral (TRE) alagoano que liberou sua candidatura. O deputado recorreu da condenação por improbidade ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), que ainda não julgou o recurso. Caso o STF aplique a retroatividade, ele poderá se livrar do processo pela chamada prescrição intercorrente, nova regra que leva ao arquivamento ações sem decisão de mérito por mais de quatro anos entre uma instância e outra superior.
A eventual retroatividade da nova Lei de Improbidade também poderia favorecer Geraldo Alckmin (PSB), candidato a vice-presidente na chapa de Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Ele não corre o risco de ficar inelegível, porque ainda não foi condenado, mas dependendo da decisão do STF, poderia se livrar de uma ação em que é acusado de receber repasses de ex-executivos da Odebrecht para sua campanha em 2014 à reeleição para o governo de São Paulo.
Como os fatos ocorreram há oito anos, o processo poderia ser arquivado neste ano, com o novo prazo de prescrição.
Outro político notório que poderia se beneficiar é o ex-governador do Distrito Federal José Roberto Arruda (PL), condenado duas vezes por improbidade, na segunda instância, em 2014 e depois em 2018. No primeiro caso, foi condenado por suposta compra de apoio político com dinheiro público. No segundo, em razão de prejuízos aos cofres públicos em contratos de informática. Os casos foram investigados na Operação Caixa de Pandora, deflagrada em 2009.
Arruda recorreu ao STJ alegando a retroatividade da nova lei. Sustentou que, com as novas regras, os casos prescreveram e que não houve dolo. Em julho, num plantão de recesso, o presidente do STJ, Humberto Martins, chegou a suspender a inelegibilidade decorrente da Lei da Ficha Limpa, justamente com base no argumento de que o STF poderia aplicar a retroatividade. Com isso, Arruda se lançou candidato a deputado federal ao lado da mulher, a ex-ministra da Secretaria de Governo Flávia Arruda (PL), que disputa uma cadeira no Senado. No último dia 1º, porém, o ministro Gurgel de Faria, relator do caso no STJ, restabeleceu a inelegibilidade dele.