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A resistência dos presidentes da Câmara e do Senado, Arthur Lira (PP-AL) e Rodrigo Pacheco (PSD-MG), em retirar a autonomia do Banco Central, como defende o PT, encontra simpatia entre os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF).
Há menos de dois anos, em agosto de 2021, eles chancelaram com tranquilidade a lei encampada pelo governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). A medida assegurou mandatos fixos para seus dirigentes, dando a eles liberdade para estabelecer a taxa de juros, independentemente de pressões políticas, para alcançar a meta de inflação, que é a principal prioridade do órgão.
Na época, boa parte da Corte alinhou-se à agenda liberal capitaneada pelo então ministro da Economia, Paulo Guedes, e vários ministros foram convencidos da pertinência da medida. Alguns, inclusive, ficaram próximos do presidente do BC, Roberto Campos Neto, com quem iniciaram conversas ainda em 2019, quando tiveram que decidir sobre o destino do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), órgão de inteligência financeira do governo.
No julgamento, provocado por uma ação do PT e do PSOL, alguns manifestaram explicitamente simpatia pelo modelo de autonomia, lembrando que várias das economias mais desenvolvidas do mundo o adotam.
Quase todos, porém, reforçaram que se trata de uma decisão política, na qual a vontade do Congresso e do Executivo devem prevalecer, sem ingerência do Judiciário. Por isso, hoje, entre os ministros, é dado como certo que não seria viável à Corte reverter, por meio de uma eventual nova ação, a decisão que declarou a constitucionalidade da lei da autonomia do BC.
Numa hipótese remota, a Corte só validaria uma eventual volta ao modelo antigo, no qual o órgão era subordinado ao Ministério da Fazenda, com diretores demissíveis a qualquer tempo, se houvesse uma convergência entre o Legislativo e o novo governo nesse sentido – algo distante do horizonte atual.
Diante das críticas recentes do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ao presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, tanto o presidente da Câmara, Arthur Lira, quanto o do Senado, Rodrigo Pacheco, já disseram ser contrários ao fim da autonomia.
Lewandowski, Fachin e Rosa Weber votaram pela inconstitucionalidade
A maior parte do julgamento não se concentrou em discutir se o modelo de autonomia era benéfico ou não para a economia. PT e PSOL argumentaram no processo que a mudança retiraria do governo o poder de direcionar a política monetária de forma condizente com a direção econômica ditada pelo presidente eleito.
Ainda assim, a discussão mais importante se deu por uma questão formal, também levantada pelos partidos. Eles apontaram que a lei da autonomia, aprovada em 2020 pelo Congresso, deveria ter sido proposta pelo Executivo.
Na realidade, o governo Bolsonaro enviou uma proposta à Câmara. Mas já tramitava na Casa um projeto mais antigo, já aprovado no Senado anteriormente. Para agilizar a tramitação e evitar que a questão voltasse aos senadores, os dois projetos foram juntados, de modo que a aprovação pelos deputados permitisse que a proposta, agora unificada, fosse levada diretamente à sanção presidencial, como ocorreu.
PT e PSOL argumentaram que, formalmente, deveria ser aprovada a proposta de Bolsonaro. Isso porque a Constituição estabelece que são privativas do presidente da República as propostas que disponham sobre servidores públicos federais, regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria; bem como sobre criação e extinção de ministérios e órgãos da administração pública, como é o caso do BC.
Apenas três ministros votaram pela inconstitucionalidade da lei, com base nesse argumento: Ricardo Lewandowski, Edson Fachin e Rosa Weber. Os três costumam ter posições mais à esquerda em matéria de economia, mas no caso desse julgamento, preferiram não fechar questão sobre o benefício ou malefício da autonomia do BC. Concentraram-se na questão técnica, relativa ao processo legislativo. O único que fez alguns alertas, na linha do PT e do PSOL, foi Lewandowski, relator da ação.
“A supervisão ministerial é o mecanismo clássico para lograr o alinhamento da atuação da administração indireta às diretrizes governamentais”, disse, sobre a subordinação que o BC tinha em relação à Fazenda. “Mas, aqui, não se está debatendo se a autonomia do Banco Central é benfazeja ou deletéria para o destino da economia do País nem se a decisão congressual nesse sentido foi ou não adequada”, afirmou.
"Responsabilidade fiscal é tese progressista", disse Barroso
Os outros sete ministros que participaram do julgamento não viram problema na origem e tramitação da proposta. Parte reconheceu que a lei teve sua gênese no projeto do Senado, mas que como a proposta da Presidência era praticamente idêntica – e portanto, havia clara vontade do Executivo na autonomia – o problema estaria resolvido.
Outros consideraram que o Congresso também poderia ter a iniciativa, já que a lei não tratou exatamente de criação ou extinção de órgão, nem do regime de servidores, mas consubstanciava uma política pública que implicava numa mudança do sistema financeiro, passível de regulamentação por iniciativa do Legislativo.
Assim, votaram pela constitucionalidade formal da lei os ministros Luís Roberto Barroso, primeiro a se posicionar dessa maneira, Kassio Nunes Marques, Alexandre de Moraes, Dias Toffoli, Cármen Lúcia, Gilmar Mendes e Luiz Fux.
Alguns deles demonstraram simpatia mais clara pelo modelo da autonomia, a começar por Barroso.
“O Banco do Mundial enfatiza a importância da autonomia do Banco Central para a estabilidade dos preços e do mercado financeiro e para uma regulamentação sólida dos bancos e outras instituições. Afirma que tal modelo é essencial para a formulação de uma boa política macroeconômica e, portanto, para o desenvolvimento econômico de longo prazo dos países em geral”, disse.
Depois, fez uma defesa enfática da responsabilidade fiscal, bandeira liberal em matéria econômica, compartilhada em larga medida por quem também defende a autonomia do BC.
“Responsabilidade fiscal não tem ideologia. Responsabilidade fiscal não é nem de esquerda e nem de direita, não é nem monetarista e nem estruturalista. É apenas um pressuposto das economias saudáveis. O descontrole fiscal traz recessão, desemprego, inflação, desinvestimento e juros altos. Os mais penalizados por esse tipo de conjuntura são os mais pobres, de modo que, no fundo, responsabilidade fiscal é a tese progressista, é a tese que, na ponta final, protege quem mais precisa de uma economia hígida para que tenha emprego, para que não haja inflação e para que não haja juros altos”, disse o ministro.
Kassio Nunes Marques também se mostrou claramente favorável à autonomia.
“A ideia de mandatos fixos escalonados está arraigada à de proteção da autonomia do Banco Central, para que consiga concretizar seus objetivos de política pública de Estado, mais do que – e não só – de governo”, disse. “A autonomia do Banco Central, a exemplo do FED ou do Banco Central Europeu, é requisito essencial para a confiança nas relações internacionais. Simultaneamente, traduz-se em forte indicativo de transparência, responsabilidade e governança. Tais fatores são essenciais à manutenção de ambiente econômico estável e favorável ao crescimento do País. Isso atrairá investimentos e, portanto, maior desenvolvimento econômico à sociedade como um todo”, completou depois.
Fux também fez uma defesa entusiasmada da autonomia. “Em todos os países de economias em desenvolvimento do mundo, o Banco Central é autônomo, é independente do governo, é um órgão do Estado. Basta relembrarmos do Federal Reserve - FED, que tem a autonomia que tem e imprime o progresso econômico da maior nação do planeta, que são os Estados Unidos.”
“A toda evidência, é tempo de racionalização das despesas públicas. E o processo de reposicionamento do Banco Central há de reverberar positivamente em toda a cadeia do Sistema Financeiro Nacional. Não à toa, a justificação da Lei Complementar 179/2021 enfatizou esse necessário afastamento de medidas “eleitoreiras”, incompatíveis aos objetivos de estabilidade zelados pela autoridade monetária”, concluiu o ministro, que, à época, era o presidente do STF.
Os outros ministros favoráveis à validação da lei que instituiu a autonomia do BC tiveram posição mais moderada.
Dias Toffoli fez questão de pontuar que era uma questão política, legitimamente aprovada pelo Congresso e que não deveria sofrer qualquer interferência do STF. “O tema está contido no espaço de conformação legislativa dentro do qual compete aos poderes eleitos democraticamente tomar as decisões cabíveis diante do cenário brasileiro atual, o que não impede que, diante de uma tentativa malsucedida, retorne-se ao modelo anterior”, disse, adiantando a possibilidade de uma revisão no futuro.
Ainda assim, afirmou que, ao contrário do que diziam PT e PSOL, o Banco Central ainda estaria sujeito a controle do poder político. O presidente e os diretores continuariam a ser indicados pelo presidente da República e terem seus nomes aprovados pelo Senado para serem nomeados. Em caso de desempenho insuficiente para alcance da meta de inflação, eles seriam demissíveis antes do fim do mandato, caso o governo e o Senado aprovassem a medida.