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O Supremo Tribunal Federal (STF) retomará, nesta quarta-feira (2), o julgamento que pode descriminalizar o porte de drogas para consumo pessoal. Com a proximidade da deliberação, entidades interessadas no tema têm se mobilizado para influenciar o voto dos ministros. Uma das últimas manifestações foi do Ministério Público de São Paulo, que é contrário à despenalização. O órgão sustenta que uma decisão favorável do STF iria bater de frente com a Lei Antidrogas, especialmente numa mudança, introduzida no governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), que elevou o combate ao tráfico e melhorou o tratamento de dependentes.
O Ministério Público paulista é o órgão de origem de Alexandre de Moraes, o próximo a votar. A posição dele é objeto de grande expectativa, em razão de seu histórico ligado à segurança pública, não só no MP, mas também no Executivo.
A decisão do STF é aguardada desde 2015, quando começou o julgamento. Na época, votaram a favor da descriminalização o relator, Gilmar Mendes, e os ministros Edson Fachin e Luís Roberto Barroso. Em síntese, argumentaram que tratar usuários como criminosos era fator de estigmatização e medida ineficaz para reduzir os danos causados pela dependência química. Na época, a análise foi paralisada por um pedido de vista do ministro Teori Zavascki.
Em 2018, Moraes, seu sucessor na Corte, disse que estaria apto a votar, mas desde então, a ação não foi pautada. Nos bastidores, um dos motivos foi a política mais rígida do governo de Jair Bolsonaro no combate às drogas, com recordes de apreensão. A avaliação, na época, é que uma descriminalização via STF traria mais um ponto de atrito na relação da Corte com o Executivo. Agora, com a esquerda no poder, favorável à descriminalização, uma decisão assim seria menos traumática politicamente, embora com alguma resistência do Congresso.
No julgamento marcado para quarta (2), além de Moraes, poderão votar os ministros Kassio Nunes Marques, André Mendonça, Dias Toffoli, Cármen Lúcia, Luiz Fux e Rosa Weber. Depois de Moraes, qualquer um deles pode pedir vista e paralisar novamente o julgamento.
Argumentos do MP-SP contra a descriminalização do porte de drogas
A manifestação do MP paulista, apresentada em maio, buscou rebater argumentos comumente usados de quem defende a descriminalização. Para isso, o órgão citou recente alteração na Lei Antidrogas, sancionada e aprovada no Congresso com apoio de Bolsonaro, e também o problema crescente das cracolândias, que têm se espalhado pelo país, em capitais e cidades médias. Ao contrário do que se imagina, uma eventual descriminalização liberaria não só o consumo de maconha, mas também de drogas pesadas, como crack, cocaína, heroína e outras.
Para defender a continuidade da penalização, o procurador-geral da Justiça de São Paulo, Mário Luiz Sarrubbo, se valeu de uma alteração feita em 2019 na legislação. Naquele ano, a política de drogas mudou para reforçar o papel das comunidades terapêuticas e permitiu a internação involuntária de dependentes. A pena para o usuário – que não é de prisão e se limita a advertência, prestação de serviços à comunidade e comparecimento a programa ou curso – permaneceu, mas com a possibilidade de atenuante se a quantidade apreendida for baixa e “demonstrar menor potencial lesivo da conduta”.
A lei, aprovada pelo Congresso e sancionada por Bolsonaro, parte do princípio de que, embora o consumo de drogas seja uma decisão individual, não causa danos apenas ao usuário, mas também à saúde pública e à segurança da coletividade. O problema não é só de ordem pessoal, mas social, como demonstra a situação da cracolândia, onde abundam mortes por violência e diversas doenças. Foi com base nisso que o MP-SP sustentou, perante o STF, que ainda é adequado, necessário e proporcional penalizar o porte de drogas, sem que o usuário seja levado à prisão, mas submetido a medidas que possam afastá-lo do vício.
“Do ponto de vista normativo, o Estado reconhece seus limites no que tange às decisões de cada indivíduo em relação ao consumo de drogas, sem ignorar, porém, que o uso indevido das substâncias psicoativas interfere no convívio social, ou seja, na própria sociedade [...] A proliferação das drogas é, visivelmente, uma das causas principais do aumento da criminalidade em todo o país, incluindo as antes pacatas cidades interioranas”, diz o MP-SP.
Segundo o órgão, a penalização do porte para consumo não tem por finalidade proteger o indivíduo de si mesmo, numa concepção paternalista do Estado, mas impedir o aumento da violência, a deterioração do convívio social e familiar, e males na saúde coletiva.
A criminalização, ainda que com penas brandas, seria uma forma de conter a proliferação das drogas e os danos que elas causam, sobretudo diante da insuficiência ou inexistência de políticas públicas para preservar a saúde e a segurança pública no contexto do narcotráfico.
O MP cita, como exemplo, um estudo de 2012 que constatou que a taxa de mortalidade entre usuários de crack em São Paulo era sete vezes maior do que na população em geral. Mais da metade foi vítima de homicídio, um quarto morreu de Aids, e outra parte considerável por overdose e hepatite B.
Outro argumento diz respeito ao tráfico. O MP sustenta que uma decorrência lógica da descriminalização do porte seria também a descriminalização do comércio, algo expressamente proibido pela Constituição. A ideia aqui é que não faz sentido despenalizar o consumo e punir o fornecimento, até porque este se alimenta do primeiro.
“A aquisição de substâncias psicoativas ilícitas pelo usuário é apenas o ato final de uma longa cadeia de delitos, que todos temos acompanhado nas últimas décadas, que geraram poderosas e violentas organizações criminosas, trazendo às regiões produtoras gravíssimos problemas de ordem pública”, diz o órgão, acrescentando que as regiões consumidoras também são dominadas por organizações criminosas.
O MP ainda rebate o principal argumento dos defensores da descriminalização, de que a punição criminal ofende o direito de personalidade e privacidade do usuário. O órgão defende que o STF deve respeitar a opção do Congresso, que instituiu a penalização como freio à proliferação das drogas. Sustenta que a medida é adequada, ou seja, apropriada para buscar esse objetivo, de caráter coletivo; é também necessária, face à ausência de outras políticas eficazes para esse fim; e proporcional, dado que não afronta de maneira desarrazoada a privacidade e o direito de autodeterminação dos usuários em suas escolhas pessoais.
“É certo que outros países adotaram o caminho da descriminalização, mesmo parcial, das drogas ilícitas. Ocorre que estes, ao adotarem tal solução, o fizeram como política estatal, trazendo, incluindo ao serviço público, meios para lidar com problemas práticos inerentes à liberalização dessas substâncias”, diz a manifestação.
O órgão volta ao problema da cracolândia, questionando o que aconteceria se, do dia para a noite, ninguém mais estivesse sujeito à punição na “ponta final da cadeia comercial criminosa das drogas”. “Onde poderá o usuário fumar sua porção de crack? Na calçada da escola? Será admitida a injeção de cocaína na corrente sanguínea numa praça, em plena luz do dia? Aliás, quem venderá a droga? Tais “liberdades” estão realmente de acordo com a Constituição Federal brasileira? Cremos que não”.
Comissão de Segurança da Câmara aprova projeto que prevê penas para usuário de drogas
Um dia antes do julgamento no STF, a Comissão de Segurança Pública da Câmara dos Deputados aprovou, nesta terça-feira (1º), projeto de lei que prevê prisão de dois a quatro anos para quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar drogas sem autorização ou em desacordo com a determinação legal ou regulamentar.
Após a aprovação no colegiado, o texto seguirá para a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). E, se passar na CCJ, estará pronto para ser votado no plenário da Câmara.
Além de prisão, o texto prevê o pagamento de multa no valor de cinco a sete salários. A penalidade vale também para quem semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena ou grande quantidade de produção e venda de drogas ilícitas.
O relator da matéria na comissão, deputado Cabo Gilberto Silva (PL-PB), ressaltou que o uso de drogas “tem sido um dos grandes problemas da nossa sociedade. Os jovens são os que mais sofrem”.
Após a aprovação na comissão, o deputado Osmar Terra (MDB-RS) alertou que o Supremo Tribunal Federal poderá apreciar nesta quarta-feira (02) a descriminalização do porte de drogas no Brasil, uma “decisão gravíssima”, segundo ele, que pode aumentar o consumo de drogas e fortalecer o tráfico no Brasil.
Ele sugeriu ao presidente da comissão, deputado Ubiratan Sanderson (PL-RS), que envie uma nota ao Supremo com a posição dos deputados da Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado, pedindo que o Supremo que não vote a matéria nesta quarta.