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Está nas mãos do ministro Kassio Nunes Marques a possibilidade de mandar o Congresso paralisar a tramitação de propostas de emenda à Constituição (PECs) que limitariam, caso aprovadas, o poder do Supremo Tribunal Federal (STF). As propostas contrariam os ministros da Corte, mas a paralisação delas, por determinação do tribunal, seria uma medida extrema, raramente adotada, embora tenha precedentes.
As ações para interromper a tramitação das PECs foram apresentadas pelos deputados Paulo Pereira da Silva (Solidariedade-SP), o Paulinho da Força; e Pastor Henrique Vieira (Psol-RJ). Eles argumentam, basicamente, que a mera tramitação das propostas é irregular, pois tende a abolir cláusulas pétreas da Constituição que não podem ser alteradas.
Sorteado para ser relator das ações, Kassio Nunes Marques ainda não sinalizou como decidirá, se de forma individual, ou colegiada, tampouco se atenderá aos pedidos de paralisação. Fora a dificuldade jurídica, uma medida do tipo tenderia a tensionar ainda mais a relação entre o STF e o Congresso, cada vez mais incomodado com o ativismo dos ministros.
Embora possa conceder uma liminar monocrática, Nunes Marques pode optar por levar a decisão ao plenário, para que os 11 ministros deliberem, em razão do potencial explosivo da ação. Se ele suspender as PECs de forma individual, pode se desgastar com os aliados do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) na Câmara, que pressionam pela aprovação das pautas anti-STF. Se negar o pedido, corre risco de ficar mal com os demais ministros da Corte - dado o inconformismo de quase todos com essas propostas do Congresso.
Para ganhar tempo e tentar articular uma solução com os colegas do STF, Nunes Marques deve pedir manifestações da PGR, da Câmara e do Senado antes de tomar qualquer atitude concreta nas ações.
PECs querem limitar monocráticas e permitir que Congresso derrube decisões do STF
Uma das PECs em tramitação permitiria ao Congresso suspender qualquer decisão do STF já transitada em julgado (sem possibilidade de reversão, por recurso) se 3/5 dos parlamentares (308 deputados e 49 senadores) considerarem que ela “extrapola os limites constitucionais” – não há definição sobre o que seria isso, o que abre a possibilidade de suspensão só por vontade da maioria.
A outra PEC, com mais aceitação dentro do Congresso e no mundo jurídico, praticamente acaba com decisões individuais dos ministros que suspendem leis aprovadas pelo Congresso ou decretos do presidente da República. A suspensão seria possível apenas por decisão colegiada, por maioria dos 11 ministros, e ainda assim uma decisão definitiva, de mérito, teria de ocorrer em até seis meses.
Nos recessos, o presidente da Corte poderia suspender a norma em questão de forma monocrática, mas na volta do recesso os ministros teriam de analisar a decisão.
Em 2013, Gilmar Mendes impediu tramitação de proposta que prejudicaria Marina Silva
A possibilidade de o STF paralisar a tramitação de projetos de lei ou mesmo propostas de emenda à Constituição é discutida na Corte desde antes da Constituição de 1988. Surgiu, pela primeira vez, em 1980, na vigência da Carta de 1967. Na época, o ministro Moreira Alves considerou que cada parlamentar tem o “direito líquido e certo” ao devido processo legislativo, inclusive de não se submeter a propostas que possam abolir as cláusulas pétreas.
Atualmente, as cláusulas pétreas (imutáveis, segundo a Constituição) são a forma federativa de Estado; o voto direto, secreto, universal e periódico; a separação dos Poderes; e os direitos e garantias individuais. O texto afirma que “não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir” qualquer uma delas. Daí a interpretação de que uma proposta que possa acabar efetivamente com a separação de Poderes, por exemplo, sequer pode ser votada.
As ações de Paulinho da Força e Henrique Vieira no STF são mandados de segurança, tipo de ação que visa proteger direito líquido e certo contra ato do Poder Público. No caso, buscam impedir o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), de permitir o andamento das PECs.
A última vez que a Corte impediu uma proposta de tramitar ocorreu em 2013, quando Gilmar Mendes, numa decisão monocrática, mandou o Senado interromper a tramitação de um projeto que, na prática, desestimulava parlamentares a aderir a um partido político em formação. Na época, a atual ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, tentava criar a Rede Sustentabilidade para concorrer à Presidência em 2014.
O projeto paralisado por Gilmar Mendes queria impedir que deputados que migrassem para a nova legenda levassem com eles cotas do tempo de TV e recursos do fundo partidário dos partidos de origem.
Para o ministro, isso estava dificultando a formação do novo partido, o que configuraria “nítida situação de abuso legislativo”, sobretudo porque o STF havia decidido, pouco antes, em sentido contrário, ou seja, pela possibilidade de deputados adicionarem dinheiro e tempo de TV na nova sigla.
O projeto de lei foi suspenso em abril, mas, em junho de 2013, quando o plenário do STF julgou o caso, a maioria dos ministros permitiu que ele fosse retomado. Prevaleceu o voto do ministro Teori Zavascki, que argumentou não caber ao Poder Judiciário se antecipar na análise de constitucionalidade de uma lei que está em fase de aprovação.
“Não há dúvida de que a antecipada intervenção do Judiciário no processo de formação das leis retira do Poder Legislativo a prerrogativa constitucional de ele próprio, através do debate parlamentar, aperfeiçoar o projeto e, quem sabe, sanar os seus eventuais defeitos”, disse.
Em regra, o STF tem o poder de declarar uma lei, decreto, emenda ou ato normativo inconstitucional após sua aprovação e entrada em vigor. Zavascki foi acompanhado pela maioria dos ministros da época: Rosa Weber, Luiz Fux, Ricardo Lewandowski, Marco Aurélio, Cármen Lúcia e Joaquim Barbosa. Ficaram vencidos Gilmar Mendes, Dias Toffoli e Celso de Mello.
Suspensão de propostas afronta função primordial do Legislativo
Mesmo com esse resultado, permaneceu, na jurisprudência da Corte, a possibilidade de parlamentares pedirem ao STF a interrupção do andamento de propostas legislativas com mandados de segurança, especialmente quando o processo legislativo não segue, rigorosamente, regras de tramitação impostas pela Constituição – o que é raro.
A suspensão de projetos por conter regras que poderiam abolir cláusulas pétreas, como a separação de Poderes, permanece quase um tabu, por afrontar diretamente a função primordial do Legislativo, que é criar e discutir novas leis.
Em 2021, Luís Roberto Barroso recebeu um pedido do deputado Kim Kataguiri (União-SP) para paralisar uma PEC que aumentava a imunidade dos parlamentares. Nenhum poderia sofrer sanções penais ou civis ao proferir opiniões, palavras e votos e qualquer medida judicial que afetasse suas funções parlamentares deveria ser aprovada de forma colegiada no STF.
Barroso negou o pedido para interromper a PEC. Mas disse que ela poderia sim, ser suspensa, se afetasse diretamente funções do Judiciário, comprometendo a separação dos Poderes.
Antes, outros ministros já haviam negado pedidos de parlamentares para suspender projetos de lei. Em 2016, Cármen Lúcia suspendeu uma liminar da Justiça do Rio de Janeiro que impedia a tramitação de projeto de lei na Assembleia Legislativa que aumentava alíquota previdenciária dos servidores do estado.
O Tribunal de Justiça do estado havia entendido que a proposta representaria dano de difícil reparação aos servidores. A ministra considerou que a decisão judicial suprimia “a possibilidade de debate sobre a questão e seu aprimoramento no espaço institucional próprio”, o Legislativo.
“Não é admissível o controle jurisdicional da constitucionalidade material de projetos de lei, sendo admissível, quando muito, a impetração de mandado de segurança para coibir atos incompatíveis com as disposições constitucionais que disciplinam o processo legislativo”, afirmou.
Ainda em 2016, Teori Zavascki negou interromper a tramitação do Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (PLDO) de 2017. Parlamentares alegaram que, se aprovada, a lei limitaria, de forma inconstitucional, gastos na saúde e educação. Sem analisar o conteúdo da proposta, Zavascki não viu problema de tramitação e deixou o Congresso deliberar.