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O governo federal decidiu recorrer novamente ao Supremo Tribunal Federal (STF) contra as medidas restritivas adotadas por estados e municípios para impedir a disseminação do novo coronavírus. A batalha jurídica contra os governantes locais, porém, tem sido pouco favorável para a gestão do presidente Jair Bolsonaro. Se nas últimas decisões sobre o caso a Suprema Corte deu razão a prefeitos e governadores, não deve ser desta vez que os ministros irão mudar de entendimento.
Na última quinta-feira (27), a Advocacia-Geral da União entrou com uma ação direta de inconstitucionalidade (ADI) no STF, desta vez contra as medidas adotadas pelos governos de Pernambuco, Paraná e Rio Grande do Norte, que restringiram a circulação de pessoas e impuseram toque de recolher. No pedido, a AGU sustenta que é preciso garantir direitos fundamentais previstos pela Constituição, como o de ir e vir, de trabalho, à vida e à saúde, e cita o avanço da vacinação.
Mas fontes que transitam pelos gabinetes de ministros da Suprema Corte garantem que eles tendem a se manter a favor de que cada ente, seja prefeito ou governador, tenha liberdade para decidir sobre as medidas em sua cidade ou estado. O ministro Luis Roberto Barroso foi sorteado nesta sexta-feira (28) para relatar a nova ADI de Bolsonaro.
Em março deste ano, o governo federal sofreu uma derrota no STF pelo mesmo motivo, quando o ministro Marco Aurélio Mello rejeitou ação de Bolsonaro para derrubar decretos dos governadores de Distrito Federal, Bahia e Rio Grande do Sul que instituíam toque de recolher na pandemia.
No caso, porém, Marco Aurélio não julgou se os estados estão ou não autorizados a decretar toque de recolher. Ele se ateve a uma questão técnica: a ADI protocolada no STF foi assinada pelo próprio presidente da República, o que não se aplica, já que quem deve fazer isso, na realidade, é a Advocacia-Geral da União.
“O chefe do Executivo personifica a União, atribuindo-se ao Advogado-Geral a representação judicial, a prática de atos em juízo. Considerado o erro grosseiro, não cabe o saneamento processual”, justificou o decano do Supremo. Ou seja, o presidente pode recorrer, mas somente por meio da AGU.
Na ocasião, o então advogado-geral José Levi teria se recusado a assinar a petição e foi demitido dias depois. Desta vez, a peça é assinada conjuntamente por Bolsonaro e o novo AGU André Mendonça, ex-ministro da Justiça e cotado para ocupar uma cadeira no STF.
Apesar de não ter entrado no mérito na ocasião, Marco Aurélio citou a decisão do Supremo de abril do ano passado que determinou que todas as instâncias do Executivo têm o direito de decretar medidas contra a Covid-19. "Há um condomínio, integrado por União, Estados, Distrito Federal e Municípios, voltado a cuidar da saúde e assistência pública."
E, ao fim da sentença, passou um recado: "Ante os ares democráticos vivenciados, impróprio, a todos os títulos, é a visão totalitária. Ao Presidente da República cabe a liderança maior, a coordenação de esforços visando o bem-estar dos brasileiros”, disse.
No início de maio, durante evento no Palácio do Planalto e sob ameaça da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid no Senado, Bolsonaro subiu o tom contra o STF e falou em publicar um decreto que garanta o direito de ir e vir da população em estados e municípios. "Nas ruas já se começa a pedir que o governo baixe um decreto. Se eu baixar um decreto, vai ser cumprido, não será contestado por nenhum tribunal", disse o presidente.
"O que está em jogo e alguns ainda ousam por decretos subalternos nos oprimir? O que nós queremos do artigo 5º [da Constituição] de mais importante? Queremos a liberdade de cultos, queremos a liberdade para poder trabalhar, queremos o nosso direito de ir e vir, ninguém pode contestar isso", afirmou Bolsonaro.
Ministros reiteram que competência é comum entre União, estados e municípios
Além de Marco Aurélio, outros ministros já anunciaram publicamente serem a favor de que estados e municípios tenham autonomia para adotar medidas que contenham a crise sanitária da Covid-19, inclusive toques de recolher e lockdowns se for o caso.
Nesta sexta-feira (28), por exemplo, o presidente do STF, Luiz Fux, disse, em seminário virtual organizado pelos jornais O Globo e Valor Econômico, que a Corte foi bastante "didática" na decisão adotada em abril de 2020.
"O Supremo foi extremamente didático, estabeleceu que a União em estado de calamidade tem responsabilidade central, mas que estamos no campo do direito à saúde. Há determinados locais que têm suas peculiaridades. Foi essa lógica do interesse local que o Supremo regulou, estabelecendo que a União tem a coordenação geral e que estados e municípios têm competência concorrente administrativa segundo suas peculiaridades locais", afirmou.
Recentemente, Fux chegou a conversar reservadamente com Bolsonaro após a ameaça de publicação de um decreto presidencial. O presidente do STF aconselhou o chefe do Executivo nacional a recorrer ao Supremo mais uma vez se estava insatisfeito, mas deixou claro que achava pouca provável que os ministros revissem o posicionamento que deu autonomia a governadores e prefeitos.
Em março, o ministro Ricardo Lewandowski já havia criticado, durante uma live, o argumento de Bolsonaro de que só o presidente da República é quem tem o direito de decretar medidas restritivas.
Em transmissão ao vivo nas redes sociais em 18 de março, o presidente afirmou que o que governadores chamam de toque de recolher é, na verdade, “estado de defesa, estado de sítio”. “Só uma pessoa pode decretar: eu. Mas, quando eu assino o decreto de defesa de sítio, ele vai para dentro do Parlamento", afirmou. “Se eles [Congresso] concordarem, aí entra em vigor. Agora um decreto de um governador ou de um prefeito, não interessa quem seja, tem poder de usurpar a Constituição”, acrescentou.
Segundo Lewandowski, “o Supremo tem afirmado em todas as suas decisões que, em matéria de saúde pública, a competência é concorrente e comum. Ou seja, a coordenação espera que seja da União. A União tem responsabilidade grande de coordenadora do sistema, mas isso não significa que estados e municípios fiquem inertes na pandemia”.
Sobre as declarações de estado de sítio, o ministro acrescentou que “a atuação do presidente da República nestes momentos excepcionais não é absolutamente livre”. E alertou: “O comportamento do presidente e de seus auxiliares é balizada pela lei, enseja, se houver abuso, em crime de responsabilidade e crime comum”.
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STF garante segurança jurídica a estados e municípios
Com a expectativa de um terceira onda de Covid-19 no país, a tendência é que mais prefeitos e governadores adotem medidas restritivas à circulação de pessoas e abertura do comércio. O governo de São Paulo, por exemplo, decidiu na última quarta-feira (26), suspender a flexibilização das medidas restritivas que entrariam em vigor no dia 1º de junho, devido ao aumento nos casos de Covid-19.
Mais prefeituras do interior de São Paulo estão decretando lockdowns em uma tentativa desesperada de contar a alta taxa de infecção e ocupação de leitos hospitalares. Em São João da Boa Vista (SP), a prefeita Terezinha de Jesus Pedroza (DEM) anunciou lockdown a partir de segunda-feira (31), com toque de recolher das 20h às 5h.
Já o município de Franca adotou o lockdown no comércio e outros serviços não essenciais a partir da última quinta-feira (27). A medida deve vigorar até o dia 10 de junho. O toque de recolher para a população funciona de 20h às 5h.
No Paraná, a prefeitura de Curitiba anunciou nesta sexta-feira (28) a entrada em vigor da bandeira vermelha (risco máximo de contágio), que restringe o funcionamento de serviços não essenciais. Comércio, atividades econômicas e sociais terão os horários de funcionamento restringidos a partir deste sábado (29), para conter o agravamento da pandemia de Covid-19.
Lojas, shoppings e restaurantes curitibanos só poderão atender via delivery, drive-thru e take away, e supermercados passam a ter restrição de horários. As medidas valem até o dia 9 de junho.
Pessoas com acesso ao Supremo afirmam que os ministros seguirão dando segurança jurídica aos prefeitos e governadores para que tais medidas sejam decretadas — mesmo com as críticas de Bolsonaro.