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Combate ao crime

STF vai julgar juiz de garantias; entenda o que pode melhorar ou piorar no processo penal

Maioria dos ministros tende a aprovar divisão das funções de investigar e julgar, mas de forma gradual (Foto: Nelson Jr./SCO/STF)

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O Supremo Tribunal Federal (STF) pautou para esta quarta-feira (14) o julgamento de novas regras inseridas no Código de Processo Penal, em 2019, que criam e regulamentam o juiz de garantias. E isso poderá mudar a forma como os crimes são investigados e seus autores julgados no país.

Atualmente, cabe a um único juiz, na primeira instância, supervisionar a investigação (fase de inquérito, onde as provas são colhidas em diligências que ele mesmo autoriza) e conduzir a ação penal (fase do processo, em que novas provas podem ser produzidas e as partes e testemunhas depõem) até o julgamento final, pela condenação ou absolvição.

O juiz de garantias prevê a divisão dessas funções. Um magistrado atuaria na investigação e outro no processo e julgamento. O objetivo é assegurar a imparcialidade. O argumento é de que quando o juiz controla a investigação, fica inclinado a manter sua posição na sentença final. Ou seja, forma sua convicção logo no início do caso e tenderia a ficar preso a ela, mesmo que depois as partes – vítima, acusação ou investigado – tragam novos elementos, ao longo do processo, que poderiam ser capazes de convencê-lo sobre outra versão dos fatos.

Os maiores defensores da lei estão na advocacia e defensorias públicas, que veem no atual processo penal uma tendência forte à condenação de réus, por influência da investigação executada pela polícia. Em contrapartida, boa parte dos membros do Ministério Público e do Judiciário se opõe ao juiz de garantias, mas não necessariamente pela divisão em si, mas pela forma como foi regulamentada pelo Congresso dentro do chamado “pacote anticrime”, aprovado em 2019.

A proposta original - formulada pelo ex- ministro da Justiça Sergio Moro do governo de Jair Bolsonaro (PL), atualmente senador pelo União Brasil (PR) - não contemplava o instituto, que foi inserido por deputados por influência de advogados e entidades influentes no campo da defesa. Na época, um dos grandes motivos apresentados por apoiadores do juiz de garantias era impedir processos como os da Lava Jato, que tiveram ritmo acelerado e resultados fora do comum, segundo a visão desse grupo.

Os defensores da operação Lava Jato dizem que isso foi possível por uma estratégia coordenada entre Ministério Público Federal, Polícia Federal Receita, Coaf e outros órgãos de controle na investigação. Já os críticos apontam suposto "conluio" da acusação com o juiz, o que tornaria os processos viciados por parcialidade, desde o início da investigação até a sentença.

Com o pacote aprovado, Moro recomendou ao então presidente Jair Bolsonaro que vetasse os dispositivos do juiz de garantias, alegando que o Judiciário ainda não estava preparado para se reorganizar e dividir as tarefas, especialmente porque em boa parte do interior do país existe apenas um juiz para julgar processos, não apenas criminais, mas também causas cíveis. O risco era de atrasar ou tumultuar o andamento das investigações e ações, aumentando a prescrição dos casos e a impunidade – críticos consideram que esse risco ainda persiste.

Bolsonaro, no entanto, sancionou o juiz de garantias e o então presidente do STF, Dias Toffoli, criou um grupo no Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para estudar sua adoção. Associações da magistratura e do MP acionaram a Corte para suspender a aplicação imediata da lei, o que foi atendido no início de 2020 pelo relator, Luiz Fux, numa liminar.

Desde então, ele e outros ministros têm sido pressionados a votar as ações, para decidir pela constitucionalidade ou não do modelo. Fux vê com preocupação uma implementação rápida do modelo sem uma reestruturação do Judiciário, especialmente para lidar com a criminalidade em geral.

Já Gilmar Mendes, defensor do modelo e hoje um dos maiores críticos da Lava Jato, considera importante a divisão da investigação e do processo, mas reconhece a possibilidade de uma implementação gradual, conforme as condições de cada estado.

No julgamento, uma solução desse tipo tende a ganhar a maioria dos votos no STF. Há, no entanto, várias questões pontuais a serem definidas. Entenda abaixo, quais são elas:

Impedimento total do juiz da investigação julgar o processo

Pela regra aprovada, o juiz de garantias, que atua na investigação, não poderá julgar o processo em hipótese alguma. Para parte da magistratura, esse é um problema, porque em boa parte do país, especialmente no interior dos estados, muitas cidades contam com apenas um juiz.

Isso fará com que, caso ele assuma a investigação, fique obrigatoriamente afastado do julgamento. Há o risco de demora e até prescrição, uma vez que um juiz de outra cidade deverá ser convocado para a fase do processo, e nem todos os tribunais estaduais têm estrutura e recursos para organizar esse deslocamento de modo a evitar a paralisação do caso.

A Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e a Associação dos Juízes Federais (Ajufe), que contestaram no STF a forma como o juiz de garantias foi previsto na lei, defendem um modelo diferente, já adotado em São Paulo.

Desde 1984, existe no estado o Departamento Estadual de Inquéritos Policiais (Dipo), que concentra as investigações nas mãos do juiz corregedor e de outros dez juízes auxiliares, e que supervisiona os inquéritos nas cidades com maior movimentação: além da capital, Araçatuba, Bauru, Campinas, Presidente Prudente, Ribeirão Preto, Santos, São José dos Campos e Sorocaba. Na prática, eles atuam como juízes de garantias.

Quando o inquérito termina e o Ministério Público oferece uma denúncia, o caso é enviado para vara criminal do local onde o crime ocorreu. O juiz, que não atuou na investigação, decide se recebe ou rejeita a denúncia. Em caso positivo, conduz o processo e depois julga a ação.

Uma das diferenças é que o modelo não vale para todo o estado. O próprio TJ-SP tem interesse em expandir para as 316 comarcas, mas diz que isso pode levar tempo e necessita de mais pessoal, estrutura e recursos para isso. A lei de 2019 é criticada pelas associações porque não abre muito espaço para os estados implementarem de forma gradual, e determina que a mudança ocorra de forma total.

Juiz que julga não poderá acessar todo o inquérito

Outro grande problema apontado pelas associações de juízes é uma regra que impede o juiz do processo de acessar toda a investigação. “Os autos que compõem as matérias de competência do juiz das garantias ficarão acautelados na secretaria desse juízo, à disposição do Ministério Público e da defesa, e não serão apensados aos autos do processo enviados ao juiz da instrução e julgamento, ressalvados os documentos relativos às provas irrepetíveis, medidas de obtenção de provas ou de antecipação de provas, que deverão ser remetidos para apensamento em apartado”, diz a regra aprovada no Congresso.

A AMB diz que, com isso, o juiz que julgará o caso ficará prejudicado e não poderá conhecer a fundo a ação. “Ninguém, em sã consciência, pode aceitar que o juiz da ação penal esteja vedado para cotejar as provas colhidas na fase do inquérito com as provas realizadas na ação penal. Esse exame pode permitir tanto a absolvição como a condenação de um réu”, diz a entidade.

Outro problema apontado pela AMB é o poder do juiz do processo anular os atos do juiz da investigação. Isso, segundo a entidade, criaria “uma instância interna dentro do 1º grau”.

Juiz pode produzir provas só para a defesa

A Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp) contesta uma regra segundo a qual o juiz de garantias não poderia atuar em “substituição da atuação probatória do órgão de acusação”. Na prática, significa que o juiz não pode tomar a iniciativa de produzir provas no lugar do Ministério Pública, órgão que acusa. Mas, para a entidade, isso não estaria proibido para a defesa, favorecendo assim só o investigado.

“Qualquer tentativa de se construir uma figura de um juiz-defensor, como já afirmado por alguns na doutrina, é tão deletéria para o sistema acusatório como a do juiz acusador, pois retira a sua imparcialidade”, diz a Conamp.

Audiências de custódia em 24 horas ou soltura

Outra regra combatida pela associação dos promotores é a que prevê soltura automática caso a audiência de custódia não seja realizada em 24 horas. Implementada em 2015, a audiência de custódia obriga o juiz a ouvir uma pessoa presa em flagrante para avaliar se a medida não foi abusiva e se realmente é necessária para preservar a segurança pública. Obrigatoriamente, devem estar presentes o promotor do MP e um advogado ou defensor do preso.

O problema, para a Conamp, é que nem sempre é possível realizar a audiência no prazo de 24 horas, porque muitas vezes não há juiz, promotor e defensor de prontidão em todas as cidades, “não por vontade dos membros do Ministério Público ou dos magistrados, mas pela realidade existente no Brasil”.

“É comum nos estados, no âmbito da Justiça Estadual, quando da realização do plantão judiciário, a divisão do território em regiões administrativas, o que pode abarcar mais de uma comarca, de modo que pode vir a ocorrer de o juiz designado para o plantão ser lotado na cidade A, o promotor de justiça na cidade B, e o defensor público, na cidade C, o que inviabiliza a realização do ato no prazo de 24 (vinte e quatro) horas, haja vista que a distância entre as comarcas, é, na maioria das vezes, considerável (mais de cem quilômetros)”, argumenta.

A Conamp diz que, ao julgar a lei, o STF deve estabelecer que, nas situações onde a audiência não for possível dentro do prazo, não haja soltura automática.

O que dizem a OAB e os defensores do juiz de garantias

A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), as Defensorias Públicas e entidades ligadas ao direito de defesa argumentam que o mais importante é dividir as tarefas de investigar e julgar. Eventuais obstáculos devem ser superados e os custos administrados para implementar o modelo em nome da imparcialidade.

“Não merecem ser acolhidas as alegações de que não há viabilidade para a implementação da garantia. Além de ser um argumento que não se sustenta quando verificada a importância principiológica do tema, a medida em tese não teria impacto financeiro significativo pois o volume do trabalho não restaria alterado, mas somente a divisão de competências”, diz a OAB.

A entidade diz que o modelo existe desde 1987 em Portugal, desde 1988 na Itália e desde 2000 no Chile. Reconhece que serão necessárias adaptações, mas que cabe a todos os poderes criar as condições para isso.

“A imparcialidade objetiva do juiz e a própria aparência de imparcialidade restam evidentemente comprometidas quando o magistrado atua na fase investigatória, uma vez que inevitavelmente realiza pré-juízos ou pré-conceitos sobre o fato objeto do julgamento, bem como forma uma ideia sobre a culpabilidade do acusado”, argumenta a entidade.

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