| Foto: Nelson Jr./SCO/STF
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Cinco anos após o início do inquérito das “fake news”, vozes de elite da advocacia criminal no país começaram, enfim, a se manifestar contra violações às suas prerrogativas no Supremo Tribunal Federal (STF). Casos recentes, da exposição de uma conversa entre um investigado alvo da Corte e seu defensor, e da proibição de contato entre advogados de investigados, foram o estopim para a reação, que mobilizou a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), associações importantes do segmento e criminalistas renomados.

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Em discursos, artigos, entrevistas e ofícios enviados ao STF, esses atores passaram a denunciar o que consideram ser atentados à democracia, no âmbito de investigações executadas pela Polícia Federal e sob a relatoria dos ministros Alexandre de Moraes e Dias Toffoli.

Desde 2019, advogados de investigados no inquérito das fake news – instaurado de ofício por Toffoli e entregue a Moraes para investigar mentiras e ofensas aos ministros – se queixam do acesso parcial aos autos. Moraes, em geral, nega cópia a partes sigilosas da investigação sob o argumento de que se referem a diligências ainda em andamento.

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Os advogados, em boa parte de fora de Brasília e sem relação próxima com os ministros, reclamavam em vão. O mesmo se dava com os que defendem os réus do 8 de Janeiro, insatisfeitos com a dificuldade para se fazerem ouvidos no STF – o pedido da OAB para que sustentações orais fossem feitas em sessões presenciais, na tribuna, como nos primeiros julgamentos, foi negado. A defesa é enviada em vídeo e não há nenhuma garantia de que sejam assistidas.

O caso de violação a prerrogativa da advocacia mais patente ocorreu na semana passada, quando o delegado da PF Hiroshi de Araújo Sakaki expôs conversas entre o empresário Roberto Mantovani, acusado por Moraes de agredir sua família no aeroporto de Roma, e seu advogado, Ralph Tórtima. O inquérito sequer deveria tramitar no STF, uma vez que Mantovani não tem foro privilegiado. Para piorar, Moraes foi admitido por Toffoli no caso como assistente de acusação, o que não está previsto na lei na fase de investigação. Toffoli ainda negou à defesa de Mantovani cópia do vídeo do aeroporto que registrou o bate-boca dele com o filho de Moraes.

A análise da gravação não foi feita por peritos da PF, mas por um agente, que reproduziu em seu relatório fotogramas do vídeo, narrando o caso com termos imprecisos, uma vez que não havia registro de áudio. O presidente da associação de peritos da PF divulgou nota criticando o procedimento e acabou se tornando alvo de um processo disciplinar dentro da corporação.

A revelação da conversa de WhatsApp entre Mantovani e Tórtima fez a OAB se mexer. O presidente da entidade, Beto Simonetti, e todos os dirigentes estaduais, pediram a Toffoli para excluir os diálogos da investigação, e solicitaram à PGR que abra investigação sobre o delegado. No ofício ao ministro, afirmaram que não só a exposição, mas a própria captação da comunicação violou o direito à confidencialidade da comunicação entre o profissional e o investigado.

“A ofensa à referida prerrogativa é um atentado contra o estado democrático de direito. A violação das prerrogativas dos advogados fere de morte as garantias constitucionais da sociedade, e isso jamais será admitido pela Ordem dos Advogados do Brasil, devendo haver punição contra quem quer que o faça, independentemente da cadeira que ocupe e da natureza e gravidade dos supostos crimes apurados”, diz o documento protocolado no STF.

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Em outro trecho, destacou que as prerrogativas da advocacia têm por finalidade o exercício livre da profissão, “sem receios de perseguições ou represálias” e depois voltou a falar em risco à democracia. “Uma vez ofendido o sigilo profissional do advogado, viola-se, como já mencionado, o direito de defesa e a democracia.”

Toffoli acolheu o pedido, mandou retirar a conversa da investigação, decretou sigilo na investigação, e comunicou a PGR sobre o caso.

À Folha de S.Paulo, Tórtima disse que a exposição da conversa teve o objetivo de constranger. “Não foi um ato simples, eu acredito que foi um ato pensado, um ato intencional, com o objetivo de constranger, com o objetivo de dar uma determinação de força ou, de alguma forma, de tentar desmoralizar o trabalho da defesa.”

Após a exclusão, a OAB recuou nas críticas ao STF. “Essa medida resguarda não apenas os direitos dos envolvidos, mas também a confiança no sistema judiciário”, disse o presidente Beto Simonetti.

Em defesa do delegado Hiroshi de Araújo Sakaki, a Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal (ADPF) afirmou, em nota, que ele tem autonomia para investigar o caso e que os diálogos entre Mantovani e Tórtima estavam numa “informação policial confeccionada por servidor encarregado de analisar os dados obtidos a partir de dispositivo apreendido, em cumprimento a determinação do próprio Supremo Tribunal Federal”.

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Acrescentou que “é dever do Delegado de Polícia Federal acostar aos autos do Inquérito Policial todas as provas e elementos de informação coletados durante a investigação, não podendo omitir qualquer dado ou informação, pois estes devem ser conhecidos pela acusação, pela defesa e pelo próprio julgador”.

IDDD vê risco de monitoramento dos advogados

Outra manifestação dura ao STF foi feita em 9 de fevereiro pelo Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), importante organização privada de defesa das prerrogativas, sediada em São Paulo, e que reúne criminalistas de peso. O motivo foi a decisão de Moraes que proibiu investigados de se comunicarem por meio de advogados no inquérito sobre supostos planos de golpe de Estado gestados no final do mandato do ex-presidente Jair Bolsonaro. Para o IDDD, a medida abre brecha para a PF monitorar os advogados.

“Para ser fiscalizado o cumprimento da cautelar deferida, seria indispensável bisbilhotar a conversa mantida entre advogados e entre clientes e advogados, o que é, data maxima venia, teratológico, num ambiente democrático, que zele pela essencialidade da advocacia para a administração da justiça, como se dá no Brasil, já que é vigente o artigo 133 da Constituição Federal”, afirmou a entidade, em ofício enviado a Moraes e aos demais ministros do STF.

A preocupação está no risco de medidas do tipo se popularizarem em todo o Judiciário. “Não é demais ponderar, ainda, que a gravidade da medida cautelar referida ganha contornos dramáticos pelo simples fato dela ter sido proferida por Ministro dessa Egrégia Suprema Corte, diante do potencial de replicação da orientação por todo o sistema de justiça criminal. Tragicamente, não demorará para ser comum, nas mais longínquas comarcas do país, o deferimento de cautelares criminais dirigidas diretamente aos Defensores dos implicados em investigações penais”, escreveram os dirigentes do IDDD Roberto Garcia e Guilherme Carnelós.

No fim de janeiro, a OAB divulgou que registrou, desde 2022, 1.347 casos de violação de prerrogativas, em cortes superiores, tribunais estaduais, federais e conselhos do Judiciário. Em ao menos outros dois casos que tramitam no STF constatou-se violação ao sigilo das comunicações entre advogado e cliente, segundo a OAB.

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A OAB também protestou contra a restrição na conversa entre advogados de investigados. Em resposta, Moraes manteve sua decisão. Disse que não havia restrição ao exercício da advocacia e ao direito à defesa, uma vez que a medida se dirigia aos investigados, para que não trocassem informações ou passassem recados através de seus defensores. O objetivo, segundo o ministro, é impedir a combinação de versões ou a inibição de testemunhas.

Em seu ofício ao STF, IDDD manifestou inconformismo com a decisão e afirmou que a orientação não está em conformidade com a Constituição. “É direito do advogado comunicar-se com seus clientes, pessoal e reservadamente, sendo indevassável o teor dessa comunicação; é direito do advogado comunicar-se com outros advogados para tratar de questões atinentes ao exercício do direito de defesa de seus constituintes, sendo inadmissível a possibilidade de monitoração do teor desses encontros”.

A Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (Abracrim) também queixou-se a Moraes da restrição. Para a entidade, a decisão continha expressões que estigmatizavam a advocacia. “É de se rechaçar e não se pode presumir, data venia, que os advogados e advogadas criminalistas funcionam como meio para a troca de informações entre os investigados, vislumbrando obstruir ou impossibilitar as investigações. Com a devida vênia, trata-se de um flagrante desrespeito ao exercício profissional da advocacia, já que não se pode impedir a comunicação entre advogados nem presumir que ela seja de cunho embaraçoso às investigações”, escreveu ao ministro o presidente da associação, Sheyner Asfóra.

Para a Abracrim, é “completamente livre a postura de que, em uma eventual estratégia única de defesa, os investigados apresentem versões semelhantes”. “O que não se pode é coagir ou induzir testemunhas a falsearem a verdade, mas os investigados podem falar tudo o que lhes interesse, inclusive nada (exercer o silêncio)”, afirmou a entidade no ofício a Moraes.

Após a nova decisão de Moraes, reiterando a proibição de comunicação entre investigados por meio de advogados, OAB disse que houve vitória da advocacia. “Não se pode confundir o advogado com seus clientes, e o texto original permitia que algumas pessoas tivessem essa interpretação. Agora, após atuação da Ordem, fica esclarecido que não há essa limitação, de acordo com o que dizem a lei e as prerrogativas”, afirmou Beto Simonetti.

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Bolsonaro obrigado a depor?

Outra decisão recente que causou estranhamento no meio jurídico foi a decisão de Moraes que negou a Bolsonaro um pedido de adiamento de seu interrogatório. A defesa queria acesso ao conteúdo de celulares apreendidos na Operação Tempus Veritatis, que realizou buscas contra militares e ex-assessores presidenciais, na investigação sobre os planos “golpistas”.

O ministro negou, alegando novamente que estavam disponíveis à defesa partes da investigação já concluídas, mas não materiais ainda sob análise da PF. A delação do ex-ajudante de ordens Mauro Cid, base do inquérito, também não foi disponibilizada.

Num segundo pedido, a defesa de Bolsonaro pediu então que ele fosse dispensado do comparecimento pessoal ao interrogatório. Moraes indeferiu o requerimento. “A defesa tem conhecimento da SV 14 do STF e da jurisprudência pacificada em relação à colaboração premiada, porém insiste nos mesmos argumentos já rejeitados em decisão anterior, onde ficou absolutamente claro que o investigado teve acesso integral à todas as diligências efetivadas e provas juntadas aos autos e que não há motivos para qualquer adiamento do depoimento marcado pela Polícia Federal para o dia 22 de fevereiro próximo”, escreveu o ministro.

Em janeiro de 2022, Bolsonaro já havia faltado a um depoimento na PF, após ser intimado por Moraes, numa investigação sobre a divulgação de um inquérito sobre uma invasão hacker ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Na época, ele citou o precedente do STF que proibiu a condução coercitiva de investigados, com base no direito ao silêncio e à não autoincriminação.

“A legislação prevê o direito de ausência do investigado ou acusado ao interrogatório. O direito de ausência, por sua vez, afasta a possibilidade de condução coercitiva”, diz o acórdão dessa decisão, proferida pelo plenário da Corte, em junho de 2018.

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Outro alvo da investigação, o coronel Marcelo Câmara ficou em silêncio no interrogatório, realizado na quinta-feira (22). Segundo seu advogado, ele queria falar, mas a PF não aguardou que seu defensor chegasse ao local para assessorá-lo nas respostas. “Num determinado momento, lhe foi apresentada duas opções: ‘ou você responde sem o seu advogado, ou a gente vai fazer constar aqui que você vai ficar em silêncio porque a gente não vai aguardar seu advogado”, disse Eduardo Kuntz. No momento do interrogatório de Câmara, Kuntz disse que acompanhava outro cliente e alvo do inquérito, o assessor de Bolsonaro Tércio Arnaud.

“Isso é muito grave, a gente não pode se acostumar com esse tipo de coisa, não pode aceitar isso como sendo normal. A defesa técnica tem que estar presente em todos os momentos”, protestou Kuntz em entrevista à GloboNews.

Advogados também apontam risco à democracia

Individualmente, alguns advogados de prestígio apontaram risco à democracia com as violações às suas prerrogativas. À Folha, Antonio Cláudio Mariz de Oliveira disse que a decisão de Moraes de proibir conversas entre advogados é “uma afronta”.

“Nem na época da ditadura militar isso ocorreu. Éramos proibidos de falar com nossos clientes, mas podíamos conversar entre nós”, afirmou à colunista Mônica Bergamo. “O magistrado não pode tomar decisões que não tenham base legal. Ou vira ditadura do Judiciário. Como criar uma regra que não está prevista em lei, e que afronta a própria lei?”, disse ainda.

Em artigo no site Poder360, o advogado André Marsiglia perguntou, em tom de provocação: “por onde andam os combativos garantistas que tanto barulho fizeram outrora e hoje parecem escondidos debaixo da cama ou guardados dentro do armário?”.

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“Durante a Lava Jato, tão criticada por eles, a defesa tinha acesso aos autos, seus clientes eram julgados por mais de um juiz e uma instância, os debates em audiências e as sustentações orais nos recursos eram preservados. Nos inquéritos sigilosos do Supremo, no entanto, as regras de suspeição e competência, criadas para se evitar julgamentos de exceção, encontram-se ultrajadas, as decisões monocráticas e a instância única se tornaram regra e a separação entre vítima, investigador e juiz inexiste”, sintetizou.

“Não há como ignorar que as decisões do STF têm sido abusivas com o direito de defesa, o que é perigoso, pois se trata do último obstáculo a ser ultrapassado para que uma democracia se degenere. Há regimes totalitários que comportam partidos políticos, voto e até mesmo imprensa. Mas jamais nesses regimes o direito pleno de defesa existe. Sua restrição é o melhor sintoma de que uma democracia vai muito mal”, escreveu Marsiglia.

Atritos entre Moraes e advogados já foram transmitidos ao vivo e estão documentados nos autos. Num dos primeiros julgamentos do 8 de Janeiro, o ministro criticou a sustentação oral de um advogado que disse, na tribuna, que ele fazia o papel de acusador no caso. “É um misto de raiva com rancor, com pitadas de ódio, quando se fala dos patriotas”, disse Hery Kattwinkel.

No momento de votar, Moraes rebateu: “É patético e medíocre que um advogado suba à tribuna do Supremo Tribunal Federal com um discurso de ódio, um discurso para postar depois nas redes sociais, que veio aqui agredir o Supremo Tribunal Federal, talvez pretendendo ser vereador do seu município no ano que vem.”

Outro que sofre repreensões frequentes do ministro é Paulo César Faria, que defende o deputado cassado Daniel Silveira, condenado no STF por xingar e ameaçar os ministros. Em outubro do ano passado, Faria pediu uma cópia da denúncia ao ministro. Em resposta, Moraes informou que ele poderia obter o documento físico, se comparecesse ao gabinete. O advogado protestou, pedindo uma cópia eletrônica. Moraes mandou intimá-lo advertindo-o que poderia ser condenado por litigância de má-fé e ter de pagar 10 salários mínimos de multa.

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Em 2022, o ministro multou Faria em R$ 10 mil antes do julgamento de Silveira, por diversos recursos apresentados contra decisões anteriores na ação penal. O ministro acusou o advogado de apresentar “sucessivos recursos manifestamente inadmissíveis, improcedentes, ou meramente protelatórios, com objetivo de postergar o julgamento”.

Em novembro do ano passado, durante conferência da OAB em Belo Horizonte, o presidente da seccional de Minas Gerais, Sérgio Leonardo, protestou contra violações às prerrogativas, na presença de Simonetti e do presidente do STF, Luís Roberto Barroso.

“Dizemos, respeitosamente, mas em alto e bom som, que os excessos que vem sendo praticados por magistrados nos tribunais superiores nos causam indignação e merecem o nosso veemente repúdio!”, bradou. “Não podemos admitir que advogadas e advogados não tenham acesso integral aos autos de processos para os quais estejam constituídos. Não podemos tolerar que advogados recebam cópias parciais e seletivas de autos. Não podemos anuir com a prática do magistrado que não recebe a advocacia. Não podemos aceitar de forma alguma que a advocacia seja silenciada ou tolhida nas tribunas perante os órgãos do Poder Judiciário”, disse.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]