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Desde a semana passada, membros do Ministério Público Federal (MPF) têm se alarmado com um comentário, veiculado na GloboNews, segundo o qual integrantes do órgão teriam recebido um hipotético “recado” do Supremo Tribunal Federal (STF) de que poderiam ser processados por suposta prática do crime de prevaricação caso não denunciem o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), a partir da delação de seu ex-ajudante de ordens Mauro Cid.
Vários procuradores manifestaram-se com espanto nas redes sociais, alguns expressando incredulidade sobre essa possibilidade, outros considerando-a absurda e abusiva, caso seja real. Isso porque a Constituição Federal garante ao Ministério Público “independência funcional”.
A Lei Orgânica do MP, por sua vez, diz que cada um deles tem a prerrogativa de “inviolabilidade pelas opiniões que externar ou pelo teor de suas manifestações processuais ou procedimentos, nos limites de sua independência funcional”.
No direito brasileiro, formou-se uma tradição segundo a qual essas garantias servem para dar liberdade a promotores e procuradores para formar sua convicção no momento de denunciar ou não alguém por um crime, a partir da análise dos fatos e condutas levantadas numa investigação. O MP, em suma, tem independência para avaliar se de fato ocorreu um crime, quem teria cometido esse delito e se há provas suficientes para acusar essa pessoa na Justiça.
Por essa razão, não caberia a um juiz denunciar um promotor por prevaricação caso ele deixe de denunciar uma pessoa que o magistrado considera criminosa e que, portanto, deveria ser acusada, em seu entender. O crime de prevaricação consiste no ato de “retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal”.
A possibilidade de um procurador ou promotor ser processado caso se recuse a denunciar alguém por entender que não houve crime ou não haja provas contra uma pessoa tem preocupado a categoria. Em 2021, atenta a esse risco, a Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp) apresentou uma ação ao próprio STF para proibir que isso aconteça.
O argumento é que existe uma “multiplicidade de interpretações legítimas e possíveis de uma norma no âmbito da hermenêutica jurídica” e, por isso, procuradores e também juízes não podem ser responsabilizados caso “defendam orientação minoritária, em discordância com outros membros ou atores sociais e políticos”. Em outras palavras, procuradores e juízes não podem ser punidos por interpretar a lei de maneira diferente de outros, ainda que contra o entendimento da maioria dos colegas.
Em fevereiro do ano passado, o relator da ação da Conamp no STF, Dias Toffoli, concordou com o pedido para afastar o risco de punições a procuradores em razão de suas decisões.
“A Constituição Federal assegura a autonomia e a independência funcional ao Poder Judiciário e do Ministério Público no exercício do seu mister, sendo, portanto, uma prerrogativa indeclinável, que garante aos seus membros a hipótese de manifestarem posições jurídico-processuais e proferirem decisões sem risco de sofrerem ingerência ou pressões político-externas”, escreveu o ministro na decisão.
E, por isso, o espanto de vários procuradores com o comentário veiculado pelo jornalista Octavio Guedes, na GloboNews. Segundo ele, seria “impossível” não haver denúncia contra Bolsonaro, a partir da delação de seu ex-ajudante de ordens Mauro Cid. “O Ministério Público Federal já recebeu recados do Supremo de que existe o crime de prevaricação. E que no caso do Cid, se eles [procuradores] insistirem nessa briga, eles podem tomar um processo de prevaricação no meio da cara, o MP”.
O comentário foi feito depois de o subprocurador-geral da República Carlos Frederico ter afirmado, em entrevistas, que é “fraca” e sem provas suficientes a delação de Mauro Cid. O acordo foi pactuado pela Polícia Federal sem a concordância do MPF, a quem cabe, ao final da investigação, avaliar se é o caso ou não de formular uma denúncia criminal contra Bolsonaro.
Procuradores se manifestam sobre suposto "recado"
Na rede social X (antigo Twitter), vários procuradores manifestaram indignação ou incredulidade com esse suposto “recado” do STF contra o MPF.
“É gravíssimo! O jornalista acusa ministros do STF de coagirem o Ministério Público a oferecer denúncia em relação a uma investigação que mal começou, violando a imparcialidade e a inércia judicial, bem como a independência funcional do MP. Que tipo de juiz faria uma coisa dessas?”, postou na rede social o procurador da República André Estima.
“Essa informação é um absurdo tão grande, uma teratologia tão flagrante que só pode ser falsa. Não tem pé e nem cabeça. Causa espanto a normalidade com que os jornalistas deram a informação. Nenhum questionamento, nem uma crítica, nenhum constrangimento, sequer um mínimo desconforto. O absurdo, o teratológico, o inimaginável virou o novo normal”, escreveu, por sua vez, o procurador do MPF Helio Telho.
“Ultimamente, todas as garantias penais vêm sendo relativizadas em nome de um bem maior, com os aplausos de quem usa com frequência argumentos pseudogarantistas para defender a soltura em massa de criminosos profissionais”, protestou o procurador Daniel Azevedo Lôbo.
“Se o MP não denunciar é prevaricação. E se o MP não denunciar o MP por prevaricação? Também é prevaricação. E se o último MP não denunciar o MP? Prevaricação. É tipo um esquema de pirâmide...”, brincou Abrão Amisy Neto, procurador de Justiça do Ministério Público de Goiás, chamando a atenção para o fato de que só o próprio MP poderia denunciar um procurador por prevaricação.
“Segundo o jornalista, o MPF teria sido alertado pelo STF sobre a existência de evidências da ocorrência de crimes e que, se não oferecer denúncia, ‘será processado’ (quem e por quem?). A fala carrega um ar de absoluta tranquilidade”, postou o procurador da República João Paulo Lordelo. Ele também questionou qual procurador, afinal, iria processar um colega por não fazer uma denúncia.
A reportagem apurou com integrantes da PGR que não há esse temor, muito embora o ex-procurador-geral da República Augusto Aras tenha sido pressionado pelo mundo político – e, de forma mais discreta, por parte de integrantes do próprio MPF – a denunciar Bolsonaro por causa de suas condutas na pandemia e por ter alimentado a desconfiança de parte da população em relação às urnas eletrônicas.
Sob reserva, um subprocurador disse que, por trás das críticas de Carlos Frederico à delação de Mauro Cid, está uma posição bastante comum dentro do MPF de desconfiança e rejeição à possibilidade de a Polícia Federal fechar acordos de delação premiada. Vários procuradores entendem que só o MP, como responsável final pela denúncia e por propor ao Judiciário uma punição, pode oferecer acordos do tipo, ofertando assim um benefício ao colaborador.
De resto, também há incômodo dentro do órgão com a forma como o ministro Alexandre de Moraes conduz as investigações contra Bolsonaro, muitas vezes ignorando o MPF, e autorizando medidas de investigação somente com base em pedidos da PF.