Em meio a uma inflação de 53,4% em 2019, o governo argentino ampliou o programa “Preços Cuidados”, responsável pelo congelamento de preços no país. A quantidade de itens tabelados aumentou de 70 para 308, constando na relação produtos considerados essenciais para as famílias, que vão desde higiene e limpeza até alimentos e bebidas.
Até ministros do Estado argentino foram convocados para fiscalizar se os estabelecimentos comerciais estão cumprindo as regras do tabelamento.
A medida é popular em terras portenhas, refletindo a mentalidade peronista presente entre os argentinos: de acordo com levantamento de 2018 do Instituto Ipsos, 86% dos argentinos concordam que o governo deveria controlar os preços de alimentos e serviços básicos.
A Argentina insiste nos mesmos erros do passado, mas o Brasil também tem tradição em tabelar preços: tanto no passado longínquo de José Sarney e no passado recente de Dilma Rousseff, quanto ainda nos dias atuais, em pleno governo Bolsonaro, que defende ideias liberais na economia.
O controle de preços de José Sarney
Em 28 de fevereiro de 1986 o então presidente José Sarney anunciou um plano para eliminar a inflação, que no ano anterior tinha registrado 224,65%.
Como escreve a economista Miriam Leitão no livro Saga brasileira, foi “a festa dos políticos”: “Só havia boas notícias. Nenhum sacrifício se pedia. Era a oferta do milagre do desaparecimento da inflação sem dor, através do congelamento de preços, tarifas e serviços, abono salarial e uma troca de moeda”.
A mestranda em História Econômica pela USP Anna Rangel, cuja dissertação analisa o período, conta que o tabelamento de preços era tamanho que se controlava até os itens por marca. “A euforia inicial com o plano foi tamanha que especulou-se que o Ministro da Fazenda de Sarney Dilson Funaro pudesse concorrer à presidência em 1989”, conta.
“Mas ninguém da parte econômica séria planejou ou achava que aquilo duraria. Era um plano de curto prazo. A classe política foi quem demandou estender os prazos, então passamos a ter ágio e desabastecimento”, analisa.
Ágio era o valor que se pagava no mercado negro e era crime, passível de denúncia. Por exemplo, o empresário Henry Maksoud foi preso por vender refrigerante acima do preço tabelado. Marcel Telles, sócio de Jorge Paulo Lemann, teve de se esconder para não ser preso por suposto descumprimento da tabela imposta aos produtos da cervejaria Brahma.
“O ágio é um berro de realidade: é o sistema de preços dizendo que você não pode resolver escassez na canetada; ou você reajusta ou você para de produzir”, explica Rangel. “Foi o que ocorreu em diversos países em diversos momentos da história que se aventuraram nesse caminho”, complementa.
O professor de economia da Universidade Federal do Rio Grande (FURG) Cristiano Oliveira explica como o período foi complicado para os empreendedores: “Se o produto tinha um custo de produção de 90 e era vendido por 100, o empreendedor ganhava 10. Mas ao longo da semana os custos poderiam ir para 105 por causa da inflação, então era necessário reajustar novamente para ao final da semana ter algum lucro na operação”, conta. Mas quando os preços foram represados, tudo ficou mais complexo: “Consideremos que o preço fosse congelado em 100, mas seus fornecedores já tivessem aumentado antes: você amargava o prejuízo. Em resumo, o congelamento na forma de jogo de ‘stop’ imposto por Sarney inviabilizava negócios do dia para a noite.”
Ele conta que no período, quem podia maquiava os produtos para fugir do congelamento. “Por exemplo, em vez de Chevette 87, se criou o Chevette LS. O LS tinha pronta entrega pois não existia antes do congelamento. O outro tinha uma fila infinita. Mas quem vendia commodities ficava entre os perdedores, pois não havia como maquiar. Então tiveram de cobrar ágio mesmo”, explica.
O período de controle de preços foi marcado por situações hoje vistas como “folclóricas”, como as prateleiras vazias, alguns veículos usados serem mais caros do que carros novos ou o confisco de bois no pasto pela Polícia Federal.
Controle de preços na Era Dilma
O governo Dilma praticou diversas formas de represamento de preços como forma de combater a inflação e também pensando na reeleição em 2014.
Um exemplo se deu na política de preços da Petrobras. Quando os preços dos combustíveis começaram a aumentar por causa de uma valorização do preço do barril de petróleo e também com a alta do dólar frente ao real, o governo passou a desautorizar o repasse desses preços da estatal.
Para isso, inicialmente, foram reduzidos tributos que incidiam na gasolina. Isto é: os preços se mantiveram à custa de menor arrecadação do governo. “Mas quando a Cide foi zerada em meados de 2012 e o governo continuou a bloquear os aumentos naturais do preço da gasolina, a Petrobras simplesmente deixou de repassar os aumentos de preços na proporção necessária e fazia isso por determinação política do governo” diz João Villaverde, autor de Perigosas Pedaladas.
Outro exemplo se deu em 2012, quando o governo decidiu antecipar as renovações das concessões no setor elétrico, com um mecanismo que inicialmente barateou a conta de luz. A medida foi considerada por especialistas o “11 de setembro” do setor elétrico brasileiro, com ônus para consumidores e insegurança para companhias e investidores. Em quatro anos seu custo foi de R$ 110 bilhões, segundo cálculo do Centro Brasileiro de Infraestrutura.
“Tudo se deu às custas do Tesouro Nacional, que financiou pagamentos bilionários emitindo dívida pública. Mas após o processo eleitoral, o mesmo governo Dilma decidiu que a conta de luz precisava representar os custos do setor”, afirma Villaverde.
Ele explica que o governo também buscou controles de preços de outras formas. “Um exemplo foi a redução do PIS/Cofins a produtores específicos (como os fabricantes de massas, em novembro de 2011)”, afirma. “Outro caso foi a redução de impostos sobre os produtos da cesta básica, medida anunciada em março de 2013 com o intuito declarado de evitar alta de preços e, assim, postergar a elevação da taxa de juros pelo Banco Central. Tudo para ajudar na inflação”, explica.
Villaverde analisa que todas essas políticas tiveram tanto custos implícitos, como a sociedade financiando setores específicos em troca de controle de preços, quanto explícitos, como a deterioração fiscal por abrir mão de receita e aumento da dívida pública para fazer frente a despesas sem cobertura de receita.
“Em troca, tivemos consequências efêmeras, como a conta de luz ter ficado mais barata por algum tempo antes de voltar a subir. Mas também houve casos em que os retornos foram quase invisíveis, como a inflação ter rondado 6% entre 2012 e 2014 apesar dos diversos estímulos. Ao final, o crescimento econômico foi muito baixo nesses anos”, conclui.
Tabela de frete dos caminhoneiros
Após a revolta dos caminhoneiros de 2018, o governo Temer atendeu a uma das demandas do movimento e instituiu uma tabela de frete dos caminhoneiros, que é uma forma de controle de preços. Na última quinta-feira, a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) publicou um reajuste de até 15% nos valores da tabela.
Mas Cristiano Oliveira, da FURG, esclarece que o tabelamento dos anos 1980 e o dos caminhoneiros tem distinções.
“No caso dos caminhoneiros, o preço foi tabelado em um valor muito acima do de equilíbrio. Então criou-se uma espécie de excesso de oferta, pois incentiva a oferta e desincentiva a demanda. Ou seja, gera perdas de rendimento e emprego para os caminhoneiros.” Estudo dele juntamente com o pesquisador Rafael Pereira apontou que, após o tabelamento a renda dos caminhoneiros autônomos encolheu 20%.
“No plano econômico de Sarney, o que chamava a atenção era a escassez de oferta. Mas dos dois casos fica a lição de que políticas intervencionistas deste tipo geram consequências não intencionais, geram perda de bem-estar para empresários e trabalhadores e só atrapalham o desenvolvimento do país”, conclui.
Controle de preços nos planos de saúde
Anualmente a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) define o reajuste máximo dos planos de saúde individuais. Em 2019 ele foi de 7,35%. Enquanto isso, os planos coletivos empresariais não são regulados pela agência e os aumentos chegam a 20%. Não à toa, muitas pessoas defendem que haja maior regulamentação em relação aos planos empresariais.
Mas o professor do Instituto de Ciências Sociais do Paraná Luiz Fernando Vendramini afirma que historicamente os índices de reajuste autorizados estão desatrelados de critérios técnicos e são menores do que a inflação de serviços médicos. Assim, a maioria das operadoras parou de oferecer a modalidade individual, concentrando-se nos contratos empresariais, que dominam 80% do mercado. Na prática, o controle de preços da ANS asfixia os planos de saúde.
Para Davi Lyra Leite, doutor em Engenharia Biomédica pela Universidade do Sul da Califórnia e especialista em políticas públicas de saúde, há duas formas de intervenção comum no setor. Uma é a definição de que as pessoas têm que gastar pelo menos um valor “X” de sua renda em saúde. "A outra é definir quanto ou como os preços vão ser ajustados no mercado via agência reguladora", explica.
“Na Suíça, por exemplo, o país define que o segurado precisa gastar algo entre 8% e 10% da sua renda com serviços de saúde, então os suíços são obrigados a contratar um plano dentro de uma cartela aprovada pelo governo, mas há uma competição muito grande de serviços entre os provedores", afirma Leite. "O sistema alemão é semelhante, mas entre os principais atores do mercado há um plano de saúde estatal que, subsidiado, acaba forçando o preço dos agentes privados para baixo”, explica.
Para Leite, há uma estrutura perversa na ANS que obriga as operadoras a oferecerem um pacote mínimo de serviços e, ao mesmo tempo, controla os preços dos planos individuais. O resultado disso é que quase 70% dos brasileiros não têm plano de saúde, segundo pesquisa do Serviço de Proteção ao Crédito (SPC), e são completamente dependentes do Sistema Único de Saúde (SUS).
Ele conta que outros países também têm algum tipo de controle de preços via governo, mas normalmente eles não são tão draconianos quanto no Brasil.
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