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O presidente Jair Bolsonaro usou a Constituição Federal, a Lei da Liberdade Econômica e a Lei Nacional da Quarentena para contestar no Supremo Tribunal Federal (STF) o toque de recolher decretado pelos governadores do Distrito Federal, Ibaneis Rocha (MDB); do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB); e da Bahia, Rui Costa (PT).
Em uma ação direta de inconstitucionalidade (ADI) protocolada no STF pela Advocacia-Geral da União (AGU) e assinada pelo próprio Bolsonaro, o presidente contesta as medidas de toque de recolher adotadas no Distrito Federal e na Bahia. A ação também questiona a decisão de Eduardo Leite de permitir a venda só de itens essenciais nos supermercados (a intenção do governo gaúcho é desestimular a circulação de pessoas que não precisam de produtos essenciais).
Ao longo de 24 páginas, a ADI do governo federal contesta a constitucionalidade do toque de recolher adotados nos estados. Ao defender o cumprimento da "lei fria", Bolsonaro cita o inciso II do artigo 5.º da Constituição, de que "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei" para se opor às medidas restritivas de toque de recolher.
"Essa contingência, por si só, já compromete toda a legitimidade do 'toque de recolher' adotado em diversas unidades federativas do país, uma vez que essas medidas estão em contraste ostensivo com a forma canônica que a Constituição brasileira atribuiu ao princípio da legalidade", sustenta a ação do governo federal.
Outro dispositivo usado por Bolsonaro é o inciso XV do artigo 5.º, que dispõe sobre a chamada liberdade de circulação. "É livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens", diz a ADI, citando o texto constitucional. "(...) ao promover drásticas restrições à liberdade econômica e à liberdade de ir e vir a descoberto de fundamento legal, os decretos aqui impugnados romperam com o padrão de institucionalidade exigido pela Constituição para atos dessa natureza – que é a lei, em sentido formal", diz a ação.
"Decretos locais podem definir os serviços e atividades essenciais a serem preservados, mas somente legislação formal pode impor restrições à locomoção de pessoas saudáveis ou ao exercício de atividades econômicas", argumenta outro trecho da ADI.
O governo chega a citar que a Constituição "nasceu sob a inspiração de rejeição ao autoritarismo" para endossar a oposição às medidas restritivas dos estados.
Ainda dentro da Constituição, o governo cita o artigo 136 para defender a inconstitucionalidade dos decretos estaduais. O dispositivo dispõe sobre a instituição do Estado de Defesa e Estado de Sítio. Para Bolsonaro, "medidas de conteúdo tão drástico em contextos específicos de convulsão e calamidade" poderiam ser decretados não por estados, mas pelo governo federal.
E, ainda segundo a ADI, o Estado de Defesa decretado pelo presidente tem de seguir "devido processo específico", que é ser submetido para aprovação do Congresso dentro de um prazo de 24h.
Mesmo o decreto de Estado de Defesa teria, no entendimento do governo, uma "intensidade das medidas" escalonadamente "menos severa". "A obrigação de permanência em localidade determinada, de outro lado, somente é admitida no âmbito do estado de sítio, que em alguns casos surgirá apenas quando comprovada a ineficácia do Estado de Defesa. Ambos os mecanismos, sítio e defesa, em nenhum momento foram decretados sob a Constituição de 1988", ressalta.
Os argumentos de Bolsonaro com base na Lei da Liberdade Econômica
No caso específico do Rio Grande do Sul, o governo do presidente Jair Bolsonaro usa a Lei da Liberdade Econômica para contestar a proibição de supermercados venderem produtos não essenciais.
Há quase uma semana, os supermercados no Rio Grande do Sul estão proibidos de vender eletroportáteis e eletrônicos, à exceção de itens de informática, telefonia e relacionados ao preparo e conservação de alimentos, e outros produtos de: beleza e perfumaria; decoração; vestuário, brinquedos e jogos; esporte e lazer; e cama, mesa e banho.
Bolsonaro sustenta "que não há, em parte alguma da Lei n.º 13.979/2020 [a Lei da Liberdade Econômica], previsão genérica que delegue competência a instâncias executivas locais" para as medidas restritivas. Tanto a proibição da venda de bens não essenciais, como também para as medidas de toque de recolher, que proíbem a venda de produtos nos horários estabelecidos pelos estados.
O governo destaca que, "na falta de legislação sanitária geral sobre o tema", a "disciplina jurídica do desenvolvimento das atividades econômicas" é regida pelas normas da Lei da Liberdade Econômica. Para tal, AGU cita na petição o inciso I do artigo 2.º, que estabelece a "liberdade como uma garantia no exercício de atividades econômicas", e os incisos IV e II do mesmo artigo, que reconhece a "vulnerabilidade" das empresas perante o Estado e a "boa-fé" das empresas perante o poder público.
As fundamentações contra o toque de recolher com base na Lei de Quarentena
Ao questionar o toque de recolher previsto pelos decretos do Distrito Federal (n.º 41.874/21) e da Bahia (n.º 0.233/21), o governo federal defende o cumprimento à risca da Lei n.º 13.979/2020, a Lei Nacional de Quarentena.
Os incisos I e II do artigo 3.º da Lei Nacional de Quarentena estabelecem que, "para enfrentamento da emergência de saúde pública", as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências" políticas de "isolamento e quarentena". Ou seja, o governo quis defender sua tese que, na legislação, não há quaisquer permissões sobre toque de recolher como medidas de enfrentamento à Covid-19 – mas apenas de isolamento e quarentena.
Outro inciso da lei, o VI ao artigo 2.º, prevê "restrição excepcional e temporária, por rodovias, portos ou aeroportos", da "entrada e saída do país" e "locomoção interestadual e intermunicipal". Mais uma vez, no entendimento do governo, a letra fria da lei não veda a circulação de pessoas em uma mesma cidade durante a pandemia – apenas permite a proibição de circulação entre municípios e estados.
Em vários trechos da ADI, o governo federal argumenta que decretos estaduais não podem se sobrepor a leis nacionais. "Os Estados-membros e o Distrito Federal não possuem legislação local que outorgue aos respectivos governadores a prerrogativa de decretar medidas de inibição ampla da locomoção ou do funcionamento das atividades econômicas", diz um trecho da ADI.
"Os atos normativos impugnados são inconstitucionais por violação direta ao princípio da legalidade, já que não há nem no direito ordinário (nacional e local), nem na Constituição – nenhuma provisão que habilite os chefes dos Poderes Executivos distritais, estaduais e municipais a decretar, por autoridade própria, esse tipo de inibição nas liberdades econômica e de locomoção dos cidadãos", diz a ação em outro trecho.
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Embasamento em pareceres do Ministério Público
Para derrubar as medidas restritivas dos três estados, o governo federal também usou como argumento entendimentos de Ministério Público (MP) estaduais. Bolsonaro sustenta que "algumas instâncias do Ministério Público" têm apresentado pareceres contrários ao toque de recolher a alguns municípios.
"Algumas instâncias do Ministério Público têm editado recomendações e atos informativos para sinalizar aos prefeitos brasileiros sobre a inexistência de respaldo legal para toques de recolher", diz a ADI.
Um dos exemplos citados é o do Ministério Público de Santa Catarina. A instituição catarinense entende que o "toque de recolher" é inconstitucional e que a medida vale apenas para o Estado de Sítio e situações de guerra.
"A quarentena não se confunde, porém, com o chamado 'toque de recolher', que consiste em 'proibição, determinada como medida excepcional por governo ou autoridade, de os civis permanecer na rua a partir de determinada hora'. O toque de recolher é limitação genérica e abstrata, sem 'base em evidências científicas e em análises sobre as informações estratégicas em saúde'", diz um trecho da parecer do MP-SC.
Outros estados com toque de recolher não estão na ADI
A ADI no STF não questiona a edição de decretos de outros estados e municípios com teor semelhante aos editados por Rio Grande do Sul, Bahia e Distrito Fdeeral.
O Rio Grande do Norte, estado governado por Fátima Bezerra (PT), é um dos que decretou medidas restritivas como o toque de recolher. Aliados de Bolsonaro, os governadores de Minas Gerais, Romeu Zema (Novo); do Rio de Janeiro, Cláudio Castro (PSC); e do Paraná, Ratinho Júnior (PSD), também decretaram toque de recolher. Nenhum deles teve a decisão contestada.
Já a prefeitura de Curitiba, no último decreto que instituiu medidas de restrição mais rigorosas, ainda em vigência, proibiu a venda de produtos não essenciais – tal como o governo do Rio Grande do Sul.