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O desfecho da votação da reforma tributária no Senado, realizada em dois turnos na noite desta quarta-feira (8), revelou a interferência de fatores distintos, que vão além da simples polarização entre o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). Ambos desempenharam papéis diretos nas negociações, buscando assegurar a aprovação (Lula) ou impedir (Bolsonaro) a proposta. O governo acabou vencendo sem a folga esperada, precisando fazer concessões de última hora. Foram apenas quatro votos além dos 49 necessários. O placar só não foi desfavorável devido a traições, benesses federais e interesses regionais.
A mobilização coordenada pelo líder da oposição, Rogério Marinho (PL-RN), buscou ao longo da sessão somar votos suficientes para barrar o projeto. Em certo momento, a bancada oposicionista chegou a apoiar o projeto alternativo proposto pelo senador Oriovisto Guimarães (Podemos-PR), com efeito meramente simbólico, para marcar posição. Após o primeiro turno, tentou-se também emplacar mudanças no texto. Em todo o momento, Marinho expôs contradições do projeto e o risco de elevação da carga tributária, com o Imposto de Valor Agregado (IVA) de maior alíquota no mundo, estimada em 27,5%, em razão dos regimes diferenciados (exceções concedidas a setores).
O núcleo mais fiel ao ex-presidente, por sua vez, até mostrou alinhamento de 90%, mas também evidenciou divergências entre os apoiadores de Bolsonaro, afetados pela influência de fatores regionais, da atuação de lobbies empresariais e, sobretudo, da tradicional persuasão por meio da concessão de cargos federais e verbas do Orçamento. Nos bastidores, comenta-se que dois senadores conservadores mudaram de voto por essa motivação, obtendo favores do Planalto. A ação do Planalto envolveu o próprio Lula em abordagens e concessões de última hora do relator Eduardo Braga (MDB-AM).
A entrada de Bolsonaro em campo para barrar a reforma se deu com a sua ida ao Congresso, telefonemas e mensagens enviadas aos senadores da oposição. Na mão inversa, pesou forte a inesperada criação de um fundo com recursos da União para compensar os estados menores do Norte (Acre, Rondônia, Roraima e Amapá), além da atuação intensa de ministros e lideranças do governo em busca de votos. Apesar das benesses anunciadas, o senador Dr. Hiran (PP-RR) destoou do grupo de senadores nortistas e votou contra, cedendo à pressão pessoal de Bolsonaro.
Segundo relatos de bastidores, o governo negociou também o apoio dos ainda resistentes Giordano (MDB-SP), Rodrigo Cunha (Podemos-AL), Zequinha Marinho (Podemos-PA) e Nelsinho Trad (PSD-MS). O jornal O Estado de S. Paulo flagrou mensagem de Bolsonaro no celular de Trad, pedindo para votar contra a reforma. Em seguida vem a resposta do senador, lamentando já ter empenhado a palavra pelo voto favorável, após ter uma demanda acatada. Essas viradas jogaram contra o esforço do ex-presidente. Por uma retaliação pessoal, o senador Irajá (PSD-TO) acabou não comparecendo ao plenário, frustrando o governo.
Orientação dos líderes da direita foi ignorada por senadores
Os líderes dos partidos da base aliada – MDB, PDT, PSB, PSD, PT e União – orientaram naturalmente pela aprovação. Os dos partidos de oposição – Novo, PL e Republicanos –, por sua vez, indicaram o voto não.
Já o PP, cujo presidente nacional e senador Ciro Nogueira (PI) se posiciona como opositor ao governo, liberou a bancada, tal qual também fizeram PSDB e Podemos. Nogueira e o senador Laércio Oliveira (PP-SE) votaram a favor da reforma. A líder do PP no Senado, ex-ministra da Agricultura Tereza Cristina (MS), votou contra a reforma.
O voto de Nogueira a favor pode ter sido um canal de sintonia com o correligionário Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara, que quer fazer avançar a agenda reformista. O senador oposicionista Plínio Valério (PSDB-MA), por sua vez, foi à tribuna para informar que apoiaria a PEC em razão da opção pela manutenção dos subsídios da Zona Franca de Manaus.
Quem deixou de votar, como o senador Márcio Bittar (União Brasil-AC), ajudou indiretamente a oposição, pois o objetivo principal era impedir que o governo alcançasse a marca de 49 votos favoráveis. Bittar foi afetado também pela inclusão do fundo de ajuda aos estados do Norte. Aliado do governo, Cid Gomes (PDT-CE), também se absteve, assim como o oposicionista Marcos Rogério (PL-RO). Flavio Arns (PSB-PR) estava inclinado a apoiar a proposta de Oriovisto, mas acabou votando com o governo.
Aspectos regionais impedem partidos de fechar questão
Para o cientista político Ismael Almeida, as contradições evidenciadas no desfecho da votação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) eram previsíveis, dada a natureza complexa da matéria.
“A reforma tributária abrange uma rede intricada de interesses, que vão desde o âmbito empresarial até as esferas políticas e federativas. Nesse cenário multifacetado, torna-se desafiador para a maioria dos partidos impor uma posição unificada, dada a diversidade de interesses presentes”, observou.
Ele acrescentou que os aspectos regionais e as condições específicas de cada mandato de senador também exercem influência significativa, acrescentando dificuldade extra às tomadas de decisão.
O senador Laércio Oliveira (PP-SE) causou surpresa por ser um dos dois votos do PP a favor da reforma. Defensor do setor do comércio e serviços, cuja perspectiva é de aumento da carga tributária, ele tentou explicar seu voto aos eleitores surpreendidos pela acolhida de uma emenda pelo senador Eduardo Braga (MDB-AM).
“A emenda 722 de minha autoria preserva milhões de empregos no comércio. Ela exige que o governo envie projeto de lei reformando a tributação sobre os salários em até 180 dias. A reforma da tributação sobre a folha, inclusive sua desoneração universal, é a forma de preservar a seguridade social e diminuir a elevação da carga tributária sobre os serviços", afirmou o senador.
“As exceções previstas na reforma são importantes para amenizar o impacto brutal que ela causará sobre o mercado, sobretudo sobre o setor de serviços. O ideal seria que a PEC não fosse votada agora. Precisa ser mais pensada e dialogada com todos. Se as leis complementares que regularão inúmeras questões e que foram deixadas em aberto não tiverem densidade normativa suficiente, o novo sistema correrá o risco de ser impraticável”, comentou o advogado tributarista Daniel Correa Szelbracikowski.
Curiosamente, apesar de protagonizar embates com a oposição nos últimos meses, Soraya Thronicke (Podemos-MS) votou contra a reforma governista, por defender seu projeto ainda da campanha presidencial de um imposto único, sempre associada ao seu vice na chapa, o economista Marcos Cintra.