O presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) poderá indicar 50 pessoas para tomar pé da situação de todos os programas, projetos e contas do atual governo para preparar a nova gestão. É o chamado "governo de transição" – que está regulamentado por uma lei de 2022, editada pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) para viabilizar a transição, considerada bem-sucedida, para o primeiro mandato de Lula na chefia do Executivo. Outras regras foram fixadas por Lula em um decreto de 2010, quando ele passava a gestão para a ex-presidente Dilma Rousseff (PT).
A lei prevê que os indicados por Lula ocuparão cargos comissionados, com salários que variam de R$ 2,7 mil a R$ 17,3 mil, a depender do posto. Eles podem ficar nesses cargos até dez dias após a posse presidencial, no dia 1º de janeiro de 2023. Além disso, terão à disposição local, infraestrutura e apoio administrativo necessários ao trabalho – salas já foram reservadas no Centro Cultural do Banco do Brasil (CCBB) de Brasília.
A coleta de informações já pode começar. Para isso, o coordenador da equipe de transição – no caso, o vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin (PSB) – deverá requisitar as informações que considerar necessárias à Casa Civil – chefiada no atual governo pelo ministro Ciro Nogueira.
As normas que regulamentam a transição obrigam os atuais gestores e servidores a fornecer todos os dados pedidos, inclusive sigilosos. O objetivo é que o novo governo possa iniciar o ano com medidas já previamente preparadas, e para que inúmeras políticas públicas permanentes e essenciais não sejam interrompidas.
O decreto diz que são princípios da transição a “colaboração entre o governo atual e o governo eleito”; a “transparência da gestão pública”; o “planejamento da ação governamental”; a “continuidade dos serviços prestados à sociedade”; a “supremacia do interesse público”; e a “boa-fé e executoriedade dos atos administrativos”.
Segundo o decreto, as informações a serem disponibilizadas incluem aquelas relativas às atividades exercidas por pelos órgãos e entidades federais, inclusive relacionadas à sua política, organização e serviços; às contas do governo federal; à estrutura organizacional da administração pública, à implementação, acompanhamento e resultados dos programas, projetos e ações, bem como metas e indicadores; e a assuntos que requeiram adoção de providências, ação ou decisão da administração nos primeiros quatro meses do novo governo.
Qualquer boicote ao fornecimento das informações sujeita o servidor a processo disciplinar (que pode resultar em demissão, se a conduta for grave) e a processo por improbidade administrativa (que pode gerar multas, proibição de ocupar novos cargos públicos ou de firmar contratos com a administração pública, além de inelegibilidade). No caso de ministros e presidentes de estatais, há possibilidade de condenação por crime de responsabilidade, que também leva à suspensão de direitos políticos e inabilitação para funções públicas por oito anos.
TCU vai acompanhar a transição
Neste ano, o Tribunal de Contas da União (TCU), braço de fiscalização do Legislativo, decidiu, pela primeira vez, fiscalizar a transição. O presidente em exercício do órgão, Bruno Dantas, é aliado de Lula. Ele coordenará um comitê formado por outros três ministros: Vital do Rêgo, ex-senador do MDB e próximo do PT; Antonio Anastasia, ex-senador do PSDB e do PSD; e Jorge Oliveira, indicado por Bolsonaro para o TCU. Dantas disse que o objetivo é garantir que a lei que regulamenta a troca de governo seja “cumprida rigorosamente”.
“A alternância de poder é algo absolutamente natural e salutar. A administração pública se rege por um princípio de continuidade da gestão pública. Não é possível que todas as vezes em que há alternância de poder haja uma paralização da prestação de serviços públicos”, justificou Dantas.
Na quinta-feira (3), estiveram no TCU os ministros Ciro Nogueira (Casa Civil) e Paulo Guedes (Economia). Ao final do encontro, Anastasia, que será relator do processo de fiscalização, disse que “há uma grande receptividade por parte da equipe do atual governo, que quer fornecer as informações, e eu acredito que assim vai correr de forma muito serena e tranquila”.
O TCU, acrescentou, vai assegurar que todas as informações sejam prestadas no “tempo adequado”. À CNN, Dantas disse que os ministros “mostraram total espírito colaborativo”. “Disseram que deixarão tudo documentado, tanto os pedidos da equipe do novo governo quanto as respostas. Também disseram que todos bancos de dados serão abertos.”
Para o advogado Valdir Simão, ex-ministro da Controladoria-Geral da União (CGU), órgão de fiscalização do Executivo, e do Planejamento, Orçamento e Gestão, o TCU saberá observar se haverá eventual dolo (intenção) de sonegar informações. Mas ele acredita que não haverá problemas, considerando o nível de profissionalismo dos servidores e a estrutura de informação disponível no governo, quase integralmente em bancos de dados digitais.
“Grande parte das informações são públicas. Não há dificuldade para quem conhece a estrutura de governo acessar as informações. Mas o que é sigiloso, e que precisa de ser de conhecimento, e aquilo que são decisões ainda a serem tomadas, e nesse caso não tem ainda uma transparência, a transição ajuda muito. Do ponto de vista prático, não vejo dificuldade de cada ministério, estatal, estabelecer contato com membros da equipe do novo governo. Isso é uma prática comum, ninguém vai sonegar informação, porque pode se colocar em situação de risco”, diz Valdir Simão.
Ele acrescenta que todo gestor público profissional faz questão de documentar muito bem todas as suas ações, não só para preparar eventuais sucessores, mas para prestar contas – algo corriqueiro e exigido na administração federal.
Ainda assim, Simão chama a atenção para medidas ainda em estudo pelo atual governo e que seriam tomadas nesses meses finais do ano ou no início de 2023. Nesse caso, como são políticas ainda em fase de elaboração, podem estar sob sigilo ou restritas a poucos integrantes do governo. Cabe também à atual gestão dar conhecimento delas à equipe de transição, de modo que Lula e seus auxiliares possam decidir se elas são compatíveis ou não com seus planos.
“É muito importante que esse diálogo aconteça. De modo que, eventualmente, a transição possa sinalizar continuidade daquela política ou discordância de que seja implementada. Pode ter um ou outro ponto de não concordância e não faria sentido implementar medidas onde há sinalização de que o novo governo não concorde. Ao mesmo tempo não pode descuidar para que coisas importantes fiquem em compasso de espera. Não é um período de cogestão. A gestão é do atual governo. O que a equipe tem é acesso a novas informações para que comece a esboçar as medidas necessárias para o início [do novo governo]”, diz o ex-ministro.
Advogado especializado em Direito Administrativo e doutorando em Direito Público pela UERJ, Rafael Arruda considera respeitável o Brasil contar com uma lei de transição, considerando a complexidade da máquina federal e a grande quantidade de servidores no Executivo, inclusive nas estatais. Ele também avalia que já existe uma tradição de realizar no país processos de transição funcionais. “Tudo ocorre como se fosse trocar o pneu com o carro em movimento. Simplesmente é impossível que o novo titular pare as coisas para se inteirar”, diz.
Ele acrescenta que, mesmo que haja dificuldade política, o corpo burocrático do Estado, formado por servidores de carreira, garante o repasse das informações. “Os governos passam e vão passar, no entanto, os servidores que ocupam cargos de provimento efetivo, permanecem na administração. Eles detêm dados, informações, documentos e por meio deles a transição não fica comprometida, caso haja embaraço político. Mas o que se espera é que dados e informações de caráter político também sejam passados. Para além daquele dado e informação de caráter técnico, também as informações mais sensíveis, de caráter político, que possam não estar documentadas, devem ser passadas.”
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