Ouça este conteúdo
O inchaço de integrantes do gabinete de transição do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) criou os primeiros atritos na articulação política do futuro governo. Com 290 membros – entre remunerados e voluntários –, a equipe de transição enfrenta divisões internas e disputas por espaços. Aliados minimizam essa situação. Mas ela impõe desde já um desafio para a montagem do futuro governo e da base aliada no Congresso a partir de 2023.
A queda de braço político-partidária tem origem em uma divisão interna entre os próprios coordenadores da transição. Os primeiros ruídos começaram quando o vice-presidente eleito Geraldo Alckmin (PSB) foi anunciado como o coordenador-geral do gabinete de transição. Alas do PT e de partidos aliados apoiavam a escolha da presidente nacional do Partido dos Trabalhadores, a deputada Gleisi Hoffmann, que atua como coordenadora de articulação política. Outra preferência dessa ala era o ex-ministro Aloizio Mercadante, atual coordenador dos grupos técnicos.
Desde que Alckmin anunciou os primeiros nomes do gabinete de transição, em 8 de novembro, a divisão interna se ampliou, afirmam interlocutores envolvidos nas discussões. Gleisi e Mercadante assumiram para si protagonismos que, para parlamentares e técnicos, evidenciam um conflito com Alckmin. E isso gera crises internas.
Entre os conflitos citados estão indicações de integrantes que compõem a equipe de transição e a definição das atividades desempenhadas nos respectivos núcleos. Com Alckmin, Mercadante e Gleisi atuantes na condução das discussões e na construção do gabinete, há dúvidas de aliados e políticos interessados em apoiar a transição. Eles dizem estar confusos sobre a quem se reportar e o que fazer.
Outro atrito é a disputa por cargos e espaços. Quadros políticos e até técnicos do PT e de partidos aliados de esquerda se queixam das vagas ocupadas por nomes de legendas de centro que apoiaram Lula na campanha eleitoral. Os nomes do centro, por sua vez, rechaçam as críticas e dizem que são os membros da esquerda que têm mais protagonismo e integrantes na transição.
Entre parlamentares, ex-parlamentares e nomes ligados à cúpula do PT, o partido tem 43 filiados que integram o governo de transição. O PSB tem 11, a Rede tem 6, o Psol tem 5, o PCdoB tem 4, o PDT tem 3 e o PV tem 2 membros. Todas são siglas de esquerda. Já os partidos de centro têm menos nomes na transição. O PSD tem 7 integrantes, seguido do MDB (6), e do PP, Cidadania, Solidariedade e Avante, com 2 cada. O PSDB, Pros e Agir têm um filiado cada no gabinete de transição.
Como as disputas na transição são avaliadas na base política
O deputado federal Zé Neto (PT-BA), vice-líder do partido na Câmara, avalia com naturalidade a disputa por espaços. "Numa transição do tamanho dessa, se não tiver um puxa e estica, não tem nem sentido. É coisa normal do jogo. Mas, de longe, não há nada que tenha uma dimensão que preocupe", diz.
O parlamentar minimiza as disputas internas e entende que a presença de Alckmin é tão fundamental quanto a de Gleisi e de outras lideranças de partidos aliados, como a deputada federal eleita Marina Silva (Rede-SP), o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) e a senadora Simone Tebet (MDB-MS).
"Querer agora que um grupo ou outro tenha mais hegemonia eu acho bobagem, até porque o plano de Lula é cuidar e dar mais oportunidades a quem mais precisa. Às vezes, encontramos um caminho na esquerda; às vezes não. Acho que a gente vai ter que ter paciência para encontrar essas definições. Precisamos de um governo de coalizão que dialogue com todos os setores", diz Zé Neto.
O deputado federal Hildo Rocha (MDB-MA), 1º vice-líder do partido na Câmara, também minimiza os ruídos e diz que a ocupação de espaços foi pautada pelo "conhecimento e disponibilidade em ajudar", não por ideologias. "Não adianta botar uma pessoa só porque é de esquerda para tratar de assunto que ela não conhece, ou botar alguém de centro que desconheça algo."
Rocha defende os integrantes do MDB que auxiliam a transição, como Tebet e os senadores Renan Calheiros (AL) e Jader Barbalho (PA). Mas pondera que não há garantia de que aliados vão ser nomeados para ministérios ou outros cargos em uma equipe ministerial – o que vale, segundo ele, tanto para a esquerda quanto para o centro.
"Geralmente aqueles que participam de um grupo de transição são, logicamente, aproveitados para fazer parte do governo. Mas não significa dizer que todos terão algum cargo de destaque almejado", diz Rocha. "Isso aí vai depender mais de composições políticas e não só da vontade e do desejo da pessoa ou do presidente eleito", complementa o emedebista.
Quais os impactos das disputas na montagem da base governista de Lula
O cientista político Lucas Fernandes, coordenador de análise política e sustentabilidade da BMJ Consultores Associados, vê como natural a disputa por espaços e protagonismo na transição. Mas ele entende que isso pode ser um obstáculo para montar uma base governista sólida que assegure a governabilidade do futuro governo de Lula.
"Lula é um presidente mais fraco em comparação a 2002 [quando foi eleito pela primeira vez]. E isso é algo que está claro até internamente no PT, porque a eleição foi super apertada – mesmo contra Bolsonaro, que chegou a ter um pico de rejeição de 60%. E o Lula chega com um Congresso muito mais fortalecido. Há 20 anos, não havia teto de gastos e orçamento secreto. Agora, ele vai precisar ceder espaços para o Centrão e, se não fizer isso, não governa", diz.
Para construir a base para os próximos quatro anos, Fernandes avalia que Lula terá que considerar o tamanho das bancadas partidárias no Congresso na definição dos ministros – o que pode desagradar a alguns aliados e até mesmo o PT. Fernandes avalia que a PEC Fura-Teto, apresentada pela equipe de transição, pode ajudar na construção da base. "Se essa PEC é aprovada agora, com o Bolsa Família fora do teto por quatro anos, Lula não vai precisa negociar fim de orçamento secreto e vai ter vários bilhões para negociar com o Congresso e os partidos."
O cientista político Enrico Ribeiro, sócio-diretor da Consillium Soluções Institucionais e Governamentais, entende que, por enquanto, as disputas internas na equipe de transição não são um problema. Para ele, a definição da atual configuração faz parte de uma estratégia da equipe de Lula para aglutinar os partidos aliados e para iniciar a construção da base.
"Me parece que o Lula está agindo por fases. Nessa primeira etapa, traz as lideranças para dentro e começa a dar sinalizações de que vai fazer a frente ampla [de partidos, para governar]. O próximo passo é começar a arbitrar a construção de ministérios e, a partir disso, vai ter que começar a quebrar ovos e vai ter que colocar mais gente de centro para construir uma base parlamentar de apoio grande", diz.
Porém, Ribeiro avalia que o gabinete de transição tem que tratar como prioridade uma melhor definição das atribuições de cada integrante até para evitar maiores riscos à articulação política. "Como não está muito claro como são as coisas, quem cuida de cada área, gera expectativas negativas de achar que está tudo confuso. Se começar a sinalizar e deixar claro o que vai fazer, obviamente isso facilita bastante as conversas. Mas me parece que Lula está querendo postergar as definições até porque quer aprovar a PEC da Transição porque vai ter custo político antecipado. Então, não vale a pena fazer sinalizações muito precipitadas em virtude disso", diz.
O cientista político Lucas Fernandes avalia ainda que alguns acordos do PT para as eleições municipais de 2024 já podem ter de ser revistos já na transição. Um exemplo citado por Fernandes é o apoio do PT ao deputado federal eleito Guilherme Boulos (Psol-SP) à prefeitura de São Paulo. O ex-governador Márcio França (PSB) pode ser outro postulando a comandar a maior cidade do país. E ele cedeu à pretensão de disputar a eleição para governador para apoiar o candidato derrotado do PT, Fernando Haddad. E as discussões sobre as eleições municipais podem começar ainda na transição. França e Boulos integram o núcleo de cidades da transição.
Os riscos das disputas na transição para a governabilidade de Lula
A despeito dos desafios, políticos e analistas não acreditam em riscos à governabilidade de Lula. "Não acredito que haja qualquer problema em razão dessas disputas por espaços. Esses acontecimentos ocorrem em função da fase de transição. Isso é superado, até porque quem de fato vai decidir são outras pessoas, os presidentes dos partidos. Quem vai garantir a sustentabilidade e governabilidade é o próprio presidente Lula, que tem delegado parte disso ao vice-presidente, o Alckmin, um homem tarimbado na área", diz o deputado Hildo Rocha.
O deputado Zé Neto reforça a análise do emedebista. "Não vejo isso como nada grave, nem risco. Lula disse que vai fazer o que fez no passado, de dialogar com os setores que não tinha tanto diálogo. Se a gente quiser, inclusive, enfrentar o bolsonarismo, que, para mim, já ficou para trás, a gente vai ter que montar esses diálogos", diz. "Mas é algo que também não depende apenas da boa-vontade de Lula e Alckmin, e sim dos presidentes de partidos e líderes de bancadas partidárias, que vão ter um poder grande de decisões de governo e de ocupações de cargos", complementa.
A percepção do analista político Enrico Ribeiro é de que, neste primeiro momento, não há nem sequer como falar em riscos à governabilidade ou não. Mas ele reforça que Lula precisa dar sinalizações. "Se Lula não indicar logo [os principais cargos do futuro governo] e não deixar bem claro logo, aí eu acho que pode, sim, gerar riscos e criar dificuldades de construção da base. Mas, se começar a indicar logo e já indicar também os ministros, e, portanto, quais serão os partidos que formarão base de apoio, aí eu já acho que não vai ter problemas porque teremos uma certeza do que vai ser essa terceira gestão", avalia.
O analista político Lucas Fernandes endossa a análise e entende que Lula vai atuar com pragmatismo para a escolha de sua equipe ministerial. "Na hora de repartir ministério, o que vai valer é a questão de quem tem mais votos a oferecer. O Lula não vai dar um ministério cheio de orçamento na mão do Psol sabendo que a federação partidária com a Rede só vai entregar 14 votos [na Câmara]", diz.