O recente bate-boca entre Jair Bolsonaro e Emmanuel Macron expôs de maneira escancarada o poder e os riscos das redes sociais quando o assunto é política externa. Abandonado qualquer tom de diplomacia digital, os dois presidentes trocaram farpas e abriram uma crise entre Brasil e França.
Antes da rixa com Macron, a França era um país praticamente ignorado por Bolsonaro no Twitter. Desde o início do mandato, o presidente tinha feito apenas um tuite mencionando o país europeu. Foi em 23 de junho para lamentar a eliminação da seleção brasileira feminina pela França no Mundial de futebol.
Levantamento feito pela Gazeta do Povo mostra que Estados Unidos e Venezuela são os países mais citados por Bolsonaro na rede social desde o início do mandato. O primeiro é considerado uma fonte de inspiração para o Brasil. O segundo é alvo de críticas por causa do regime ditatorial de Nicolás Maduro.
Cada post tem milhares de curtidas, retuítes e comentários. No melhor estilo bolsonarista, a linguagem é direta e o discurso simplificado. “O comportamento do presidente se assemelha ao de qualquer usuário de redes sociais e isso pode ser bom do ponto de vista de estratégia de uso de redes sociais, mas é péssimo para a imagem do país como pudemos ver nesse caso específico”, diz Lucas Rohan, professor de jornalismo e autor do livro “Novas Mídias, Novos Políticos”, sobre a briga com Macron.
De 1º de janeiro a 27 de agosto, o presidente fez 173 tuítes mencionando outros países, cerca de cinco por semana. Foram 30 citações aos Estados Unidos e 16 à Venezuela. A reportagem analisou também a atuação no Twitter do chanceler Ernesto Araújo e do deputado federal Eduardo Bolsonaro, presidente da Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional da Câmara, e cotado para ser embaixador em Washington.
Dos três políticos, Eduardo é o que tuíta mais intensamente sobre a política externa. Desde o início do mandato, ele fez 385 menções a outros países, em média 11 por semana. Araújo, que usa bem menos a rede social que os Bolsonaros, fez 61 menções a outros países, isto é, duas por semana, em média.
“A digitalização da diplomacia atualmente é significativa, e sinal disso é que são poucos – apenas seis países no mundo – que não possuem contas oficiais nas plataformas digitais - Twitter, Facebook e Instagram – e que a utilização desse meio é intensa e recorrente”, afirma Lucas Mesquita, professor do programa de pós-graduação em Relações Internacionais da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila).
O chanceler e o filho do presidente utilizam as redes sociais como instrumento de legitimação e publicização das ações do governo. “É muito interessante, que inclusive o conteúdo que circula nas redes desses dois atores – e de outros assessores como Filipe Martins [assessor especial da Presidência da República para Assuntos Internacionais] – refletem o discurso e o conteúdo da pauta e da agenda política do presidente”, diz Mesquita.
“As redes sociais hoje integram o rol de ferramentas de expressão diplomática entre os países, tanto para demostrar posições mais consensuais, como para exprimir posturas críticas entre os atores da política internacional”
Lucas Mesquita, professor da Unila
Estados Unidos: inspiração para o Brasil
Eduardo Bolsonaro
Eduardo é o mais ativo no Twitter. Em seus posts costuma citar os Estados Unidos em média duas vezes por semana. O tom das publicações é sempre de elogios e alinhamento ao país comandado por Donald Trump. Às vezes, o deputado do PSL paulista usa o inglês para se comunicar e marca no post o perfil oficial do presidente americano. Eduardo segue Trump, mas não é seguido pelo presidente americano.
Após ser cogitado pelo pai como possível novo embaixador, Eduardo postou um vídeo gravado em 2017 em frente à lanchonete em que trabalhou durante suas férias de verão nos EUA e desabafou: “estrangeiro, 20 anos e num trabalho humilde era respeitado nos EUA. Pagava minhas contas lá e aprimorei meu inglês sem dar gastos aos meus pais. No Brasil a imprensa me desdenha e deturpa minha fala. De fato o Brasil não é p/amadores. Até quando comeremos merda e arrotaremos caviar?”, escreveu em 16 de julho.
O filho do presidente usa a rede também para comentar os avanços nos diálogos entre Brasil e Estados Unidos em vários setores. Ele comemorou os bons frutos trazidos pela boa relação com Trump. “Após apoio para entrar na OCDE, Brasil foi aceito como aliado extra-OTAN”, escreveu em 17 de junho. Em 5 de agosto, mostrou alinhamento a Trump e compartilhou a preocupação do governo americano em adotar a tecnologia chinesa 5G: “a segurança da informação é chave em todo o mundo”, tuitou.
Jair Bolsonaro
Jair Bolsonaro usa o Twitter de forma parecida com o filho. Além de apontar a proximidade ideológica e pessoal com Trump, ele também comemora periodicamente o avanço nas relações entre os dois países. Ao todo, no período analisado, ele fez 30 tuítes mencionando os EUA, cerca de um por semana. Bolsonaro segue Trump na rede social, mas não é seguido pelo presidente americano.
“O Twitter do presidente reflete a sua postura e suas preferências de alinhamento nas relações internacionais brasileiras”, afirma Mesquita. Segundo o especialista, Bolsonaro adota um “discurso muito simplificado dentro de uma lógica amigo/inimigo” e seus tuítes tendem a fortalecer esse posicionamento.
Ernesto Araújo
Diferentemente dos Bolsonaros, Araújo usa pouco a rede social. Ele fez apenas cinco menções aos Estados Unidos em quase oito meses à frente do Itamaraty. Araújo concentra seus comentários sobre a situação na Venezuela. O país foi citado 28 vezes com ataques e críticas ao regime de Nicolás Maduro. O discurso de Araújo é alinhado ao do presidente, como mostra o tuíte do dia 23 de agosto.
Venezuela: a pior ditadura do mundo
A atenção pela Venezuela é alta no Twitter do presidente, do chanceler e de Eduardo Bolsonaro. O filho do presidente mencionou o país 59 vezes, atrás apenas dos EUA (69). No perfil do chanceler Ernesto Araújo, a Venezuela desponta com 28 menções e é o país mais citado por ele. Jair Bolsonaro é o que menos se interessa pelo país vizinho, com 16 referências.
Não há tuite em que a Venezuela não seja alvo de ferozes críticas. O país comandado por Nicolás Maduro é geralmente comparado a Cuba. Araújo já chamou de “pior ditadura do mundo” e de “regime genocida que sobrevive pela força” caracterizado por “miséria generalizada, mentira e opressão”.
Em abril, durante a tentativa de subverter o regime de Maduro, o Brasil deu apoio ao levante do presidente da Assembleia Nacional, Juan Guaidó. O político oposicionista, cuja tentativa fracassou, foi definido pelo chanceler de “corajoso líder da transição democrática”.
Nas mesmas postagens que criticam Maduro, com frequência os três políticos não perdem oportunidade para atacar também o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o PT e o Foro de São Paulo, tratados como amigos do regime venezuelano.
“A rede de circulação da informação bolsonarista é muito densa e muito alinhada ideologicamente, condição que potencializa um discurso voltado a esse público”, diz Mesquita.
Cuba: sistema falido
Ignorada pelo chanceler e citada apenas quatro vezes pelo presidente, Cuba recebeu as atenções de Eduardo 23 vezes nesses oito meses. Um tuíte de Eduardo de 1º de abril resume a postura do governo: “saímos do eixo Cuba, Venezuela, Foro de São Paulo e estamos nos aproximando de EUA, Israel, Chile e outros países prósperos”.
Israel: novo aliado?
Após o rompimento da barragem de Brumadinho, em Minas, Israel enviou ao Brasil homens e tecnologia para ajudar no resgate das vítimas. Um marco na aproximação entre os dois países. Embora o presidente Bolsonaro e o chanceler Ernesto Araújo nem sequer façam menções a Israel em suas postagens, Eduardo é fã do país comandado pelo conservador Benjamin Netanyahu. Israel é o terceiro país mais citado por ele, atrás apenas de EUA e Venezuela.
O deputado federal bate o tempo todo na tecla da aproximação com o país do Oriente Médio. “Sempre esteve ali, mas sempre foi maltratado pelos antigos governantes por razões ideológicas”, tuitou em 26 de janeiro. Esporadicamente, o filho do presidente compartilha vídeos oficiais das operações das forças armadas israelenses. Em 15 de março, ao divulgar imagens de uma tentativa de ataque de Hamas em Tel Aviv, Eduardo escreveu: “Brasil ajudaria botando estes grupos terrorista numa black list internacional”.
“Vários países da região já enxergam Israel como um aliado. Certamente o Brasil agora está no rumo certo em sua política internacional”, escreveu em 30 de março. Em 8 de abril tuitou novamente: “Ficou no passado quem acha que no Oriente Médio o inimigo é Israel”. “O país mais mal quisto do local é o Irã que dá grande suporte a grupos terroristas e causa caos na região – não é a toa (sic) que está sob sanções. Cada vez mais Israel é visto como um país amigo lá”, tuitou.
“A postura do presidente, desde sua campanha, foi se aproximar dos governos que estão alinhados ao discurso conservador e de direita, e Israel é um desses casos”, explica Mesquita.
Argentina: de amigos a inimigos
A postura do governo Bolsonaro em relação ao maior parceiro comercial na América Latina oscila de acordo com quem governa o país vizinho. Enquanto Maurício Macri estava firmemente no poder, os tuítes eram positivos.
Em vídeo publicado em 7 de junho, o presidente brasileiro anunciou em Buenos Aires o sonho de criar o peso-real, a moeda única no Mercosul nos moldes do euro. Em 28 de junho, o presidente divulgou um vídeo ao lado de Macri comemorando o acordo entre Mercosul e União Europeia.
Poucas semanas depois, após Macri ser derrotado e Alberto Fernandez vencer as eleições primárias argentinas, o tom mudou completamente. “O Rio Grande do Sul corre o risco, pela volta da esquerda na Argentina, de passar pelo mesmo sofrimento de Roraima em relação à Venezuela”, tuitou Jair Bolsonaro em 14 de agosto. Poucos dias depois reiterou:
Segundo Mesquita, é natural que a postura de qualquer governo mude em função das alterações de governo em outros países. “É importante salientar que é preciso qualificar esse debate de que governos de esquerda necessariamente buscam a consolidação de um regime socialista/comunista. Esse é um discurso muito reducionista e maniqueísta da dinâmica política mundial”, explica o especialista.
Curiosamente, Jair Bolsonaro, Eduardo e Araújo seguem Macri no Twitter, mas o argentino não segue nenhum dos três.
China: potência esquecida
Embora seja o primeiro parceiro comercial do Brasil, a China não desempenha um papel à altura no Twitter dos três políticos. O chanceler nunca fez menções ao país asiático em sua rede social. Bolsonaro pai e filho o fizeram com parcimônia, com quatro menções cada um.
O post mais interessante sobre a China é de Eduardo, em 16 de fevereiro. Em entrevista em vídeo, ele explicou que o comércio com os chineses vai aumentar nos próximos anos e que a China é o principal parceiro comercial do Brasil por “motivos ideológicos”. “Eu acredito que se você jogar com as regras do livro mercado, naturalmente os Estados Unidos vão voltar a ser o principal parceiro do Brasil”, afirmou no trecho.
Segundo Mesquita, as redes sociais bolsonaristas são muito reativas a determinados discursos e a China não é um assunto “quente” para seus seguidores. Mas o fato de não ser mencionada no Twitter não quer dizer que o gigante asiático não entre na pauta do governo. “Por exemplo, observamos a vice-presidência como um dos atores centrais nas negociações com a China”, diz o professor.
Mercosul: um pé atrás
Praticamente ignorado até o fechamento das negociações do acordo com a União Europeia, o bloco formado por Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai entrou na pauta no final de junho. “Mercosul vai deixando de ter o bloco mais fechado do mundo. Isso só foi possível com presidentes NÃO SOCIALISTAS”, tuitou Eduardo no dia 28 de junho, marcando o pai Jair e o presidente argentino, Maurício Macri.
Em 19 de julho, Araújo expressou a ideia de reconfigurar o Mercosul para “defender os interesses do Brasil, não os do Foro de SP” e das ONGs. No mesmo dia, o presidente anunciou uma vitória de seu governo: “Destaco acordo fechado para eliminar a cobrança do "roaming" de telefonia para quem viaja de um país para outro dentro do bloco. Seguimos desburocratizando!”, escreveu na rede social.
Após o candidato peronista, Alberto Fernandez, despontar na campanha presidencial argentina, o tom do governo brasileiro, fora das redes sociais, mudou. O presidente Bolsonaro e o ministro da Economia, Paulo Guedes, falaram abertamente na possibilidade de o Brasil deixar o bloco, se o próximo governo argentino “criar problema”.
A maioria vê as redes sociais como um quadro de avisos ou um prolongamento de sua assessoria de imprensa. Os que interagem, por isso se assemelham mais aos usuários ‘reais’ e acabam obtendo melhores resultados, do ponto de vista de engajamento e repercussão
Lucas Rohan, autor do livro "Novas Mídias, Novos Políticos"
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