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A possibilidade de a Procuradoria-Geral da República (PGR) criar um novo órgão que iria unificar as forças-tarefas de combate à corrupção está em discussão no Conselho Superior do Ministério Público (CSMP). Oficialmente, o discurso da PGR é que a Unidade Nacional de Combate à Corrupção e ao Crime Organizado (Unac) – como se chamaria o órgão – vai permitir uma atuação mais especializada e centralizada. Mas, dentro do Ministério Público Federal (MPF), há quem veja na criação da Unac uma manobra para promover interferência política em investigações contra a corrupção.
Na força-tarefa da Lava Jato, procuradores temem que o novo órgão seja uma tentativa de enfraquecer a operação. Integrantes do MPF que atuaram na Lava Jato e também na Operação Greenfield, duas das principais operações de combate à corrupção do país, fazem críticas a trechos da proposta de criação da Unac. Segundo eles, esses pontos do anteprojeto trazem riscos para o futuro desse tipo de investigação.
A ideia inicial de criar a Unac partiu da 2.ª Câmara de Coordenação e Revisão (CCR) do Ministério Público Federal (MPF), em agosto de 2019. O anteprojeto, que está sob análise do Conselho Superior do MP, dá mais poder ao procurador-geral da República, cargo hoje ocupado por Augusto Aras.
O anteprojeto da Unac centraliza em Brasília o comando de operações como a Lava Jato. Além disso, coloca as bases de dados das forças-tarefas de combate à corrupção sob administração de um órgão ligado à PGR – a Secretaria de Perícia, Pesquisa e Análise (SPPEA). E o coordenador da Unac seria indicado pelo procurador-geral da República. As forças-tarefas do país então ficariam subordinadas ao escolhido por Augusto Aras.
Pela proposta de resolução, a própria Unac teria autonomia para decidir a respeito de seu planejamento e de suas prioridades. A unidade poderia ser chamada para atuar em auxílio ao procurador natural de cada caso e teria, inclusive, autonomia para decidir se aceita participar das investigações.
Unac: “O diabo mora nos detalhes”
Procuradores do MPF ouvidos pela Gazeta do Povo afirmam que, em linhas gerais, a proposta de criação da Unac tem aspectos positivos. Mas eles fazem ressalvas a vários trechos do anteprojeto que podem comprometer a continuidade e efetividade das operações de combate à corrupção.
“A ideia é boa, mas o diabo mora nos detalhes”, disse um procurador da Lava Jato que pediu para não ser identificado. “Dependendo da dose pode ser um veneno, ou pode ser um remédio com efeito terapêutico”, disse outro procurador do MPF, que atua em Brasília. “É muito poder [concentrado num único órgão] e isso precisa ter um controle”, disse um terceiro procurador.
Os membros das forças-tarefas estão atentos ao andamento da proposta. “O pesadelo seria dar plenos poderes ao PGR [procurador-geral da República] para escolher o coordenador [da Unac], plenos poderes para o coordenador [conduzir as investigações e tomar decisões sobre ela] e deixar a base de dados [sobre os inquéritos de combate à corrupção] na SPPEA”, diz um dos procuradores.
Escolha de membros e do coordenador da Unac é motivo de preocupação
A primeira preocupação dos procuradores ouvidos pela reportagem é quem vai tomar as decisões dentro da Unac – ou seja, quem terá a responsabilidade de definir a forma de atuação, os casos prioritários, entre outras decisões importantes.
O projeto inicial prevê que a unidade terá um coordenador nacional, mas não especifica os poderes atribuídos a ele. O ideal, segundo os procuradores, seria que as decisões fossem tomadas de forma colegiada, de modo parecido com o que ocorre nas forças-tarefas das operações Lava Jato e Greenfield, por exemplo. Esse mecanismo ajudaria a evitar abusos e o uso político de investigações.
Segundo um dos procuradores que falou com a Gazeta do Povo, um formato hierárquico, em que o coordenador tenha plenos poderes para tomar as decisões em nome da unidade, pode prejudicar a coesão do grupo e trazer decisões que “fogem da normalidade”.
A escolha dos membros e do coordenador da Unac também é objeto de preocupação. O anteprojeto prevê que a unidade será formada, inicialmente, por membros das forças-tarefas da Lava Jato de Curitiba, Rio de Janeiro e São Paulo, além de membros da Operação Greenfield. Essas forças-tarefas constituiriam as primeiras subsedes da Unac nos estados.
A proposta também prevê que novos membros para a Unac serão designados pelo procurador-geral da República para um mandato de dois anos, prorrogáveis por igual período. O coordenador-geral da unidade também será uma escolha do PGR, feita com base em uma lista tríplice elaborada pelo CSMP.
Para procuradores das forças-tarefas, no entanto, dar plenos poderes para o procurador-geral da República indicar novos membros para a unidade e para escolher o coordenador é perigoso e pode ter como consequência o uso político da Unac para promover investigações com base em interesses escusos.
Os procuradores ouvidos pela Gazeta do Povo concordam com a ideia de mandato para os integrantes da Unac, mas divergem em relação à renovação.
Um deles defende que não deve haver limite de renovação para não se perder a experiência em casos em andamento. Outro defende a prorrogação apenas uma vez para que os procuradores “não se eternizem” nos cargos. Os procuradores também defendem que a escolha de novos membros parta da própria unidade, através de uma lista tríplice, chancelada pela CCR ou pelo CSMP.
Em relação à escolha do coordenador nacional, os procuradores ouvidos acreditam que a decisão deve ser dos demais membros da Unac, não da PGR. Isso, segundo eles, diminuiria a influência do procurador-geral na unidade para evitar o uso político das investigações.
Proteção de dados das investigações é outro ponto problemático
Outro ponto problemático no projeto da Unac é em relação ao armazenamento dos dados colhidos durante as investigações. A proposta prevê que as bases de dados atualmente custodiadas pelas forças-tarefas da Lava Jato e da Greenfield seriam transferidas e administradas pela SPPEA, um órgão da PGR. Todos os dados obtidos pela Unac também ficariam centralizados nessa secretaria.
Esse é um tema considerado delicado pelos procuradores ouvidos pela Gazeta do Povo, que consideram que a base de dados deve ser acessível apenas a membros da Unac, que teria de contar com a própria equipe de analistas da informação.
Segundo os procuradores, como a unidade vai centralizar a maior parte dos grandes casos de corrupção do país, é preciso ter cuidado com as informações para evitar que elas sejam usadas para pressões políticas e chantagens. Segundo os procuradores, é preciso garantir uma política de proteção de dados adequada para diminuir o risco de vazamentos.
O compartilhamento de dados de investigações com a cúpula do MPF, aliás, está no centro de uma ofensiva da PGR contra Lava Jato. O caso tornou-se público depois de uma visita da subprocuradora-geral Lindôra Araújo, aliada de Aras, a Curitiba, em junho.
Lindôra esteve na capital paranaense para tentar obter dados das investigações da Lava Jato. O caso resultou numa reclamação formal da força-tarefa à corregedoria do MPF. Depois disso, a PGR recorreu ao Supremo Tribunal Federal (STF) para ter acesso às informações sob a argumentação de que a força-tarefa poderia estar investigando políticos com foro privilegiado, o que é proibido. A Lava Jato diz que isso nunca ocorreu.
Mas em 9 de julho o presidente do STF, Dias Toffoli, acatou o pedido e mandou a Lava Jato abrir suas informações para a PGR. Desde a semana passada, uma equipe de técnicos da Procuradoria-Geral da República está em Curitiba para copiar todos os dados da Lava Jato – inclusive os sigilosos.
Procuradores da Lava Jato veem uma atuação política da PGR na ofensiva em busca de dados de investigações contra a corrupção. Na terça-feira (28), essa percepção foi reforçada pela declaração de Augusto Aras de que a Lava Jato é uma "caixa de segredos" para justificar o acesso da PGR aos dados das investigações. Aras falou isso numa entrevista a advogados do grupo Prerrogativas – profundamente crítico ao trabalho da Lava Jato.
Integrantes da Lava Jato também apontam para uma atuação política da PGR em outra atitude da subprocuradora Lindôra Araújo. Recentemente, ela pediu aos Ministérios Públicos que enviassem dados de investigações de governadores à PGR.
Segundo os procuradores, o pedido não é ilegal, mas chamou a atenção o fato de Lindôra ter requisitado informações apenas envolvendo governadores e não outros políticos com prerrogativa de foro. Dentre os dados solicitados estão de investigações contra os governadores João Doria (PSDB-SP) e Wilson Witzel (PSC-RJ), adversários políticos do presidente Jair Bolsonaro. Na PGR, Lindôra é vista como uma das subprocuradores mais “bolsonarista”.
Possível conflito entre o procurador do caso e Brasília
Os procuradores ouvidos pela Gazeta do Povo também ressaltam que, com uma eventual criação da Unac, é preciso ter uma preocupação com a manutenção do princípio do promotor natural – ou seja, daquele membro do MPF responsável, de acordo com a lei, pela condução das investigações. Segundo eles, os procuradores que pedirem auxílio para investigações complexas não podem ficar reféns das decisões da unidade central.
“Tem que ter um mecanismo de solução de controvérsias entre promotor natural e a Unac”, alerta um procurador. Para ele, também é importante definir se a unidade vai apenas prestar apoio ao promotor original do caso ou afastar o promotor natural e atuar como titular do caso.
Um dos procuradores ressalta ainda que, para trazer mais segurança jurídica, o ideal seria que a Unac fosse criada através de um projeto de lei aprovado no Congresso e não apenas através de uma resolução do CSMP. Essa ideia já havia sido cogitada durante o mandato de Rodrigo Janot à frente da PGR, mas não avançou.
Criação da Unac é vista como tentativa de enfraquecer a Lava Jato
A iniciativa da PGR de criar a Unac e substituir as forças-tarefas é vista por membros do MPF como uma tentativa de enfraquecer a Lava Jato.
Recentemente, a PGR passou a não autorizar a cessão de procuradores para forças-tarefas em andamento. E afirmou que o modelo de forças-tarefas está esgotado, é desagregador e incompatível com a instituição.
A manifestação foi assinada pelo vice-procurador-geral, Humberto Jacques, no final de junho, ao rejeitar a prorrogação do empréstimo de dois procuradores com dedicação exclusiva para trabalhar na força-tarefa da Operação Greenfield – que teria sido "asfixiada" pela PGR como um efeito colateral do cerco à Lava Jato.
A Greenfield investiga desvios de recursos de fundos de pensão e já ressarciu mais R$ 11 bilhões aos cofres públicos. A força-tarefa já teve cinco procuradores dedicados exclusivamente às investigações, mas agora conta apenas com o titular do caso, Anselmo Lopes, e com o apoio de outros procuradores, que acumulam funções.
Em São Paulo, três procuradores da força-tarefa da Lava Jato também perderam a dedicação exclusiva à operação. O mesmo ocorreu com um procurador da força-tarefa do Paraná.
Para um integrante da Lava Jato em Curitiba, há uma tentativa de enfraquecer a força-tarefa por motivações políticas. Para ele, a intenção é “desmontar” a Lava Jato porque ela “dá força para o [Sergio] Moro”, já que o nome do ex-ministro está fortemente ligado à operação contra a corrupção, da qual ele foi juiz. Segundo esse procurador, há um grupo político que “não quer que o nome da Lava Jato seja carregado para as próximas eleições”. Moro é cotado para concorrer ao Planalto em 2022.
Com ajustes, proposta pode ser positiva
Apesar das críticas ao anteprojeto da Unac, os procuradores do MPF ouvidos pela Gazeta do Povo avaliam que a proposta poderia ser positiva e significaria uma evolução no combate à corrupção no Brasil se fossem feitas modificações.
Essas mudanças teriam de tirar o poder do procurador-geral da República sobre o órgão, assegurar a proteção dos dados das investigações e dirimir os possíveis conflitos entre o procurador natural do caso e a Unac.
Se essas alterações forem feitas, dizem os procuradores, a Unac pode ser uma boa iniciativa. Entre as vantagens da proposta estão o fortalecimento da ideia de especialização dos investigadores, a unificação de uma base de dados das investigações de todo o país, além da possibilidade de prover estrutura necessária para atuação do MPF em casos grandes de corrupção, com desdobramentos em várias jurisdições.
Um procurador usou como exemplo um caso investigado pela Lava Jato envolvendo o Ministério do Planejamento, que acabou sendo desmembrado para São Paulo por uma decisão do STF. Os procuradores em Curitiba já tinham conhecimento do tema e estavam com as investigações avançadas, mas o caso levou cerca de um ano para ter um desdobramento depois de ser desmembrado, até que a equipe de São Paulo pudesse tomar conhecimento dos detalhes.
Com a atuação da Unac, o desmembramento não seria um problema, já que os mesmos procuradores da unidade poderiam ser chamados a atuar no caso em outro estado, auxiliando o procurador de São Paulo.