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A Câmara dos Deputados deve votar na próxima semana um projeto de lei que permite ao setor privado a compra de vacinas contra a Covid-19 e a vacinação particular em seus funcionários. A norma modifica regra que entrou em vigor no início de março, que determina a doação integral ao Sistema Único de Saúde (SUS) de todas as doses adquiridas por empresas particulares enquanto não for concluída a votação das camadas prioritárias da população.
Pela nova proposta, as empresas terão duas opções para fazer uso das vacinas que comprarem. Uma é a de destinar metade das vacinas a seus funcionários, com a outra metade sendo doada ao SUS. E a outra opção é a de vacinar tanto os funcionários quanto todos os parentes de primeiro grau dos empregados.
O projeto de vacinação particular ganhou velocidade na Câmara na última quarta-feira (31) após ser defendido publicamente pelo presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL). O parlamentar disse que o Brasil vive uma "guerra" contra o coronavírus e que, por isso, todas as armas teriam que ser utilizadas — inclusive, segundo ele, estímulos para que o setor privado compre imunizantes. A regra atual, de exigência da doação integral ao SUS, é vista por setores da política e do empresariado como pouco eficiente.
O apoio de Lira aproximou a proposta de ser votada na própria quarta pela Câmara. Mas os deputados recuaram e decidiram dedicar o dia de votações a outra iniciativa, a que amplia o grupo prioritário de vacinação.
Governo também defende a proposta; oposição vê "camarote"
O ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, é igualmente favorável a que o setor privado inicie um processo de vacinação particular. Também na quarta-feira (31), o ministro disse que via com "muita satisfação" a proposta. A declaração foi dada por ele após a primeira reunião do comitê criado para debater o combate à Covid-19, que reúne Queiroga, Lira, o presidente Jair Bolsonaro e o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG).
Na segunda-feira (29), durante audiência no Senado, Queiroga já havia exposto posicionamento em defesa do projeto. "A iniciativa privada tem se apresentado. Alguns querem doar tudo o que conseguirem para o Programa Nacional de Imunização, outros querem colocar metade dessas vacinas e a outra metade vacinar os seus trabalhadores. São posições legítimas", disse ele, durante audiência virtual no Senado.
Na ocasião, ele afirmou ainda que a Advocacia-Geral da União (AGU) havia emitido um parecer favorável à proposição que abre caminho para vacinação particular. Queiroga falou sobre o tema antes da "dança das cadeiras" da segunda-feira, que incluiu também a troca no comando da AGU. José Levi deixou a titularidade do órgão, que voltou a ser exercida por André Mendonça. A Gazeta do Povo consultou a AGU sobre o parecer citado por Queiroga, mas não obteve retorno.
Adversários do governo Bolsonaro no Congresso se posicionaram contrários à medida. Ex-ministro da Saúde, o deputado federal Alexandre Padilha (PT-SP) escreveu em seu perfil no Twitter: "Estão tentando institucionalizar, na Câmara, o camarote da vacina ou vocês podem chamar de 'legalizar furar-fila da vacina'".
Análise similar foi feita pelo também deputado federal Glauber Braga (Psol-RJ), durante pronunciamento no plenário da Câmara nesta quarta. "Essa tentativa de privatizar a utilização de vacina, deixando no final da fila aqueles que têm os menores rendimentos, como é a proposta apresentada pelo presidente da Câmara, não é algo que possa ser considerado razoável, natural. O que está se tentando fazer aqui é a constituição da vacina-camarote. Isso é um equívoco em saúde pública e um equívoco do ponto de vista social. Nós esperamos que a vacinação seja pública e para todos", disse.
O projeto que poderá ser votado na próxima semana é um substitutivo feito pela deputada Celina Leão (PP-DF), que elaborou o texto em cima da proposta original, de Hildo Rocha (MDB-MA). Segundo a parlamentar, a redação inicial continha um ponto ainda mais controverso, que era o de permitir às empresas que comprassem vacinas a possibilidade de abaterem os custos de seu Imposto de Renda. "Isso está excluído. A proposta que pode ir a votação é completamente diferente", declarou.
A possibilidade de permitir às empresas a vacinação dos familiares dos funcionários foi sugestão de Celina. "Isso faz com que fique até mais caro do que doar metade para o SUS", citou a deputada. Na opinião dela, o projeto ajuda a "garantir empregos". "Se uma fábrica tem mil funcionários e eles pegam covid, a fábrica para. E o governo federal não consegue avançar na demanda que precisa com as vacinas. Então a ideia é ajudar o SUS com as vacinas", acrescentou.
Empresários fazem lobby por vacinação particular
Além do apoio do governo e da cúpula do Congresso, o projeto chega também referendado por um forte endosso de empresários que têm se destacado pelo ativismo político nos últimos anos. Luciano Hang, proprietário da Havan, e Carlos Wizard Martins, do grupo Sforza, iniciaram uma campanha para mudar a lei e permitir que empresas pudessem comprar e utilizar vacinas contra a Covid-19.
Hang e Martins fizeram um verdadeiro périplo por Brasília entre os dias 25 e 26. Eles se encontraram com o ministro da Economia, Paulo Guedes; o da Saúde, Marcelo Queiroga; o da Infraestrutura, Tarcísio Gomes de Freitas; os presidentes de Câmara e Senado; além de membros do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do Ministério da Família, Mulher e Direitos Humanos, comandado por Damares Alves.
Martins conversou com a Gazeta do Povo na segunda-feira (29) sobre a mobilização. O empresário declarou que descarta buscar a via judicial para obter a autorização para o uso das vacinas. Ele também disse que, em seu giro por Brasília, ouviu das diferentes autoridades sinalizações positivas sobre a ideia de modificar a legislação sobre o tema. Inclusive de Rodrigo Pacheco, que é o autor da norma que está vigente. "Todos ficaram comprometidos em se empenhar", destacou.
Segundo Martins, o grupo de empresários que ele representa já iniciou negociações para a compra de 10 milhões de doses de vacinas. Eles mantêm também um site em que colhem assinaturas de empresários interessados em endossar a mobilização.
Tanto Hang quanto Martins são próximos do presidente Jair Bolsonaro. O dono da Havan é o líder empresarial mais identificado com o bolsonarismo. Já Martins se aproximou mais de Bolsonaro no ano passado, no início da pandemia, quando atuou como uma espécie de conselheiro informal do Ministério da Saúde.
Mudança rápida em lei recém-aprovada
Se realmente aprovar a nova legislação sobre a compra e o uso de vacinas pelo setor privado, o Congresso irá promover uma modificação em uma lei que o próprio Legislativo aprovou há cerca de um mês. A lei atualmente em vigor teve sua tramitação concluída pelo Congresso em 2 de março e foi sancionada por Bolsonaro no dia 10 do mesmo mês.
A aprovação de duas normas em sentido oposto em um período curto de tempo é algo "pouco comum", mas que não fere as normas do Congresso, segundo o advogado Camilo Onoda Caldas, sócio da Gomes, Almeida e Caldas Advocacia. "O Congresso tem liberdade para isso. Não é muito comum, mas tecnicamente não há restrições", destacou.