Enquanto a indústria automotiva como um todo enfrentou queda recorde de produção e vendas, um tipo de máquina fabricada pelo setor registrou resultados positivos nos primeiros meses de 2020. São os tratores de esteira, veículos pesados que têm uso principalmente em duas atividades: a construção civil e o desmatamento.
De acordo com dados da Associação Nacional de Veículos Automotores (Anfavea), entre janeiro e abril de 2020 foram vendidos 247 tratores desse tipo, mais que o dobro do registrado no ano passado (115) e o maior número desde 2013 (277).
Se comparada à venda de outras máquinas agrícolas e rodoviárias, o trator de esteira também apresentou desempenho melhor. Os tratores de rodas, por exemplo, tiveram queda de 5,17% nas vendas do primeiro quadrimestre de 2020 (8.780 unidades), na comparação com 2019 (9.259). As colheitadeiras de grãos, por sua vez, registraram redução de 32,7% nas vendas (de 1.849 unidades para 1.244) de um ano para o outro.
A venda de colhedores de cana, por sua vez, registrou aumento – mas bem mais tímido que o observado na comercialização dos tratores de esteira (32,5%, de 301 unidades em 2019 para 399 em 2020).
Construção civil tem retomada tímida após cinco anos de queda...
Não é possível comprovar que exista relação direta entre o aumento na venda desse tipo de trator e o crescimento no desmatamento. Entretanto, Raoni Rajão, professor de Gestão Ambiental na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), considera a hipótese "bastante razoável".
"A questão principal é que 2019 não foi um ano particularmente bom para a construção civil. Muito menos os primeiros meses de 2020. O investimento público também está menor, então a evidência aponta que esses equipamentos não estão sendo usados para construir estradas", diz o professor, que apontou para o aumento na venda de tratores de esteira em seu perfil no Twitter.
De fato, os indicadores mostram que os setores econômicos que podem se utilizar desse tipo de equipamento estão desaquecidos. Do lado do governo, o aumento das despesas obrigatórias já fazia com que, antes mesmo do coronavírus, o investimento público previsto para 2020 fosse o menor desde o início da série histórica registrada pela Secretaria do Tesouro Nacional, em 2007.
O Sistema de Contas Nacionais Trimestrais do IBGE, por sua vez, mostra que, do lado do setor privado, a indústria da construção civil teve crescimento tímido, de apenas 1,6% em 2019. O resultado veio após cinco anos de desempenho negativo.
O indicador do primeiro trimestre de 2020 ainda não foi divulgado, mas mensurações de outras instituições, como a Fundação Getúlio Vargas (FGV) e o Banco Central (BC), apontam para queda do Produto Interno Bruto (PIB) do país nos primeiros três meses do ano – o que deve se refletir, também, na construção civil.
...enquanto o desmatamento bate recordes
Por outro lado, o monitoramento do desmatamento vem apontando para o aumento da destruição na Amazônia. Levantamento do Sistema de Alerta de Desmatamento (SAD), do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), apontou que abril de 2020 teve 529 quilômetros quadrados de desmatamento na Amazônia Legal – o maior número em dez anos. Na comparação com abril de 2019, o aumento foi de 171%.
De janeiro a abril de 2020, ainda de acordo com os dados do Imazon, levantados a partir de imagens de satélite, o desmatamento na região somou 1.073 quilômetros quadrados. O número representa aumento de 133% em relação ao mesmo período de 2019.
Dados do sistema Deter-B, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) – coletados a partir de metodologia distinta do SAD – também apontam para crescimento do desmatamento na Amazônia. No primeiro trimestre de 2020, o sistema emitiu alertas de desmatamento para 796,08 quilômetros quadrados da região.
Em relação ao mesmo período de 2019, o aumento nos alertas foi de 51,45%. Além disso, o número é o maior para os primeiros três meses do ano desde o início da série, há quatro anos.
A tendência de aumento no desmatamento deve fazer o Brasil ir na contramão do resto do mundo no que diz respeito à emissão de gases do efeito estufa. De acordo com um estudo divulgado pelo Observatório do Clima, o país pode ter um aumento entre 10% e 20% das emissões em relação a 2018 – último ano em que há dados disponíveis. A entidade afirma, ainda, que esse aumento se deve ao crescimento do desmatamento.
Com perspectiva de flexibilização de normas, desmatadores fazem "investimento", dizem especialistas
Antônio Victor Fonseca, coordenador do Boletim de Desmatamento do Imazon, atribui o aumento do desmatamento à inação – ou mesmo estímulo – do governo federal.
"As políticas públicas que se caracterizam por transmitir a mensagem de anistia para quem pratica o desmatamento ilegal são refletidas no aumento do desmatamento na região", afirma.
Em abril do ano passado, por exemplo, o próprio presidente Jair Bolsonaro publicou um vídeo em que afirma que a orientação do governo é para que fiscais do Ibama não coloquem fogo nos equipamentos utilizados para atividades ilegais na Amazônia, incluindo os tratores esteira. A destruição de máquinas, prevista em lei, é uma das estratégias para inibir infrações ambientais.
O afrouxamento na fiscalização se traduz, ainda, no número de multas lavradas pelo Ibama. De acordo com informações obtidas pelo blog do Lúcio Vaz na Gazeta do Povo, as multas aplicadas até abril de 2020 representam apenas 19% das registradas no mesmo período em 2018 e 15% das que foram aplicadas em 2019.
Além das declarações do próprio presidente e do desmonte da fiscalização ambiental, outro fator também é apontado pelos especialistas como combustível para os desmatadores: a discussão em torno da Medida Provisória 910 – batizada pelos ambientalistas de "MP da grilagem".
O texto – que acabou sendo transformado pelo Congresso em projeto de lei após perder a validade, no dia 19 de maio – diz respeito à regularização fundiária em terras pertencentes à União. Pela MP editada pelo governo, áreas de até 15 módulos fiscais poderiam ser regularizadas apenas por autodeclaração junto ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). A legislação atual permite que isso seja feito somente em áreas de até 4 módulos fiscais.
"A expectativa de garantir lucros futuros com a comercialização da terra se traduz na ação de desmatar antes da aprovação dos projetos de regularização para garantir a posse, geralmente com o plantio de pasto e a criação de gado como 'prova' de que a propriedade está tendo algum tipo de uso", explica Fonseca, do Imazon.
De acordo com o professor Raoni Rajão, da UFMG, essa perspectiva compensa até o investimento alto em equipamentos como os tratores de esteira, que, novos, custam pelo menos R$ 500 mil.
"O criminoso faz um cálculo de risco. Se o governo diminui a fiscalização, estou sinalizando que está na hora de fazer mais isso. Junto com isso vem uma MP que dá mais certeza ainda de que vai haver a regularização no futuro. No fundo, o governo está dizendo para as pessoas que elas vão ter seu retorno ao desmatar", opina.
Como funciona o uso dos tratores de esteira no desmatamento da Amazônia
Os tratores de esteira fazem parte de uma das etapas do processo de desmate. Usualmente, os criminosos retiram, primeiro, as árvores consideradas "nobres", que têm valor comercial. Para isso, utilizam equipamentos mais leves, provocando danos menores na floresta.
É só depois, para derrubar o restante das árvores, que os desmatadores usam o chamado "correntão": com dois tratores de esteira, ligados por uma corrente, eles avançam sobre a mata. O uso desse tipo de técnica é denunciado nas árvores derrubadas, que ficam com uma "cicatriz" do choque com a corrente.
Com a floresta no chão, o procedimento consiste em esperar até que os troncos estejam secos. Então, os desmatadores ateiam fogo às árvores derrubadas, para limpar o terreno. Geralmente, o passo final é semear a área com grama, para formar pasto para a criação de gado.
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