Mesmo diante da possibilidade de um ataque russo à Ucrânia "a qualquer momento", segundo alertam os Estados Unidos, o presidente Jair Bolsonaro (PL) mantém inalterada a viagem à Rússia em seu planejamento para os próximos meses. Em dezembro, ele recebeu um convite do presidente russo, Vladimir Putin, e deve cumprir a visita em fevereiro.
Oficialmente, o governo sustenta que não há "informação sobre a agenda" de Bolsonaro "até o momento", segundo posicionamento do Palácio do Planalto. Interlocutores palacianos e aliados do presidente afirmam, no entanto, que a viagem está mantida, a despeito da escalada da tensão no leste europeu que desperta um "risco real" de guerra na Europa, segundo o secretário-geral da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), Jens Stoltenberg.
A viagem impõe desafios ao governo em um momento em que coloca o Brasil dividido entre a Rússia e os Estados Unidos, dois importantes aliados comerciais. Apesar do histórico da diplomacia brasileira em não se intrometer em conflitos militares e de pregar uma política externa baseada pelo multilateralismo e diversificação de parceiros, a previsão de viagem de Bolsonaro causa um constrangimento a outras nações do Ocidente no atual cenário.
Fiador da viagem enquanto executor da política externa brasileira, o Itamaraty tem atuado para evitar um embaraço com os EUA. No último dia 10, o ministro das Relações Exteriores, Carlos França, conversou sobre a situação por videoconferência com o chanceler norte-americano, Antony Blinken.
A chancelaria norte-americana cobrou uma resposta forte e unida contra uma possível agressão russa ao Estado ucraniano. A expectativa dos EUA era conseguir apoio junto ao governo brasileiro em sua tentativa de enquadrar o governo Putin. O governo de Joe Biden acusa sua contraparte russa de planejar uma operação falsa na Ucrânia para justificar uma invasão.
O pedido de apoio norte-americano foi respondido com pragmatismo pelo governo brasileiro. Nas redes sociais, o Itamaraty disse que os chanceleres "trocaram impressões e expressaram suas respectivas posições nacionais". Interlocutores do governo lembram que o Brasil e a Rússia fazem parte do Brics, grupo que reúne as duas nações, a Índia, a China e a África do Sul, e, portanto, justificam que não há razões para fazer algum gesto em oposição a Moscou.
O que o governo espera da viagem e por que não pensa em cancelar
A viagem de Bolsonaro à Rússia tem um caráter voltado a reforçar e ampliar laços comerciais com uma das maiores nações do mundo e é estratégico para o Brasil. Uma aposta do governo para 2022 – sobretudo com a proximidade das eleições – é destravar a economia. Por isso, melhorar o comércio com um grande país da Ásia é uma oportunidade que o Palácio do Planalto não planeja abrir mão, afirmam interlocutores.
Em dezembro, Bolsonaro enalteceu a Rússia como um "grande mercado consumidor". "Vamos aprofundar esse relacionamento", disse. "Vamos nos preparar para fazer dessa visita uma oportunidade de alavancarmos a nossa economia", declarou. Bolsonaro também citou a importância dos negócios com a China.
Uma expectativa do governo é ampliar suas exportações para a Rússia. Em 2021, as vendas de produtos brasileiros ao país totalizaram US$ 1,6 bilhão, dos quais a soja brasileira representa 22% do valor exportado. A comercialização de carnes de aves representou 11% das exportações entre janeiro e dezembro.
Já no ano passado, as importações de produtos e insumos russos totalizaram US$ 5,7 bilhões, dos quais a compra de adubos ou fertilizantes químicos representaram 62% das importações, segundo dados da Secretaria Especial de Comércio Exterior e Assuntos Internacionais (Mdic) do Ministério da Economia.
O governo brasileiro também espera apresentar sua pauta de privatizações e concessões que, ao longo deste ano, será uma aposta do governo para buscar novos investidores estrangeiros para competir. Há uma expectativa de rodadas de conversas da comitiva brasleira com empresários e investidores russos.
Além de ampliar a relação comercial, o governo também espera ir à Rússia com uma proposta de acordo militar junto à Rússia. Militares esperam fechar a compra de um sistema de mísseis antiaéreos, o Pantsir S1, e desejam que os russos compartilhem sua tecnologia sobre sistemas de combate a drones e contra ataques cibernéticos na área de infraestrutura, segundo informa a revista Veja.
Que impactos a viagem de Bolsonaro pode provocar ao Brasil
Ao passo em que a viagem de Bolsonaro à Rússia pode assegurar bons acordos para o Brasil, ela também pode trazer riscos ao avanço de algumas pautas da diplomacia brasileira junto aos Estados Unidos e a União Europeia, avalia o analista político Ricardo Mendes, diretor da consultoria Prospectiva.
"Do ponto de vista estritamente comercial, é uma viagem que justifica, tem mais a ganhar do que a perder. Mas, politicamente, há, sim, um risco. O Brasil está mexendo com high politics [temas de maior relevância entre atores internacionais], não é só uma questão comercial", pondera. "Pode ser prejudicial no sentido em que o país pode deixar de avançar pautas e abrir uma avenida de cooperação com os Estados Unidos e a União Europeia", complementa.
Apesar da pauta comercial, Mendes reforça que o gesto dado por Bolsonaro com a viagem pode não ser bem recebido junto aos principais atores do Ocidente. "Hoje, o Brasil já tem um relacionamento muito distante com os EUA e a Europa, mas existe uma história toda de proximidade que o governo pode acabar afastando", analisa.
Uma das principais metas estabelecidas pelo Itamaraty é colocar em vigor o acordo entre o Mercosul e a União Europeia. Em relação aos Estados Unidos, uma das principais metas do Brasil é selar um acordo de livre comércio, apesar de a gestão Biden ter freado as conversas nesse sentido. Ambas as metas poderiam, assim, ficar mais distantes. A Europa renovou sanções econômicas contra Moscou e os EUA sinalizam fazer o mesmo.
O cálculo político de Mendes é de que, entre ônus e bônus, o Brasil pode sair mais prejudicado do que beneficiado após a viagem no longo prazo. "Teria mais a ganhar com o alinhamento mais próximo ao Ocidente", analisa. O especialista pondera, contudo, que o movimento adotado pelo Itamaraty não é novo e reflete o histórico da diplomacia em diversificar as relações comerciais.
Como fica a condição de aliado extra-Otan com a viagem à Rússia
A pressão do Ocidente sobre o Brasil vem, em grande parte, dos Estados Unidos. Desde 31 de julho de 2019, o Brasil se tornou um aliado militar preferencial fora da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) com o apoio de Donald Trump, ex-presidente norte-americano.
A Otan tem presença militar no leste europeu e ameaça ampliar o contingente na região caso Putin não recue no avanço à fronteira com a Ucrânia. Pressionada, a Rússia disse que as conversas com os EUA e com a Otan foram "malsucedidas". Apesar disso, o país tem uma nova reunião marcada com o governo americano para a sexta-feira (21).
Na queda de braço com a Rússia, os Estados Unidos desejam um apoio mais enérgico do Brasil, enquanto membro extra-Otan e membro rotativo do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU), assento que o governo brasileiro assumiu neste mês.
Desde 2021, Biden tem sido pressionado pelo Partido Democrata a revogar a condição. Uma carta assinada em outubro do ano passado por 63 deputados democratas pede que o status do Brasil de aliado extra-Otan seja suspenso. A carta foi recebida pela Casa Branca, mas Biden manteve a condição ao governo brasileiro.
A falta de um gesto mais firme contra a Rússia, contudo, pode não ser determinante para o Brasil perder seu status de aliado extra-Otan, analisa o analista político Bernardo Nigri, consultor em política internacional da BMJ Consultores Associados. Para ele, não valeria aos Estados Unidos o ônus diplomático.
"Os EUA têm apresentado uma postura de pragmatismo na relação com o Brasil. Não falam muito de cooperação, mas assim como nas questões ambientais, Biden não se mostra colocando o Brasil em uma posição de destaque para criticá-lo ou atacá-lo", diz. "Revogar o status por isso seria um gesto bastante forte, e eu acho que eles não estão dispostos a abrir mão dessa relação pragmática", acrescenta Nigri.
A própria condição de um aliado extra-Otan explicita que o Brasil não integra formalmente a coalizão e não tem responsabilidade jurídica de ter alguma obrigação ou comprometimento com uma defesa central da aliança militar internacional. "Não implica nenhuma defesa mútua", destaca o analista.
Apesar dos riscos, que proveitos Bolsonaro pode tirar da viagem
A despeito dos riscos políticos que a viagem à Rússia pode acarretar ao Brasil, existe a possibilidade de o governo tirar proveito do fogo cruzado entre os governos russo e americano. Além de ser uma oportunidade de fortalecer a agenda externa de Bolsonaro, se usada de forma estratégica, pode ser uma forma de o Itamaraty negociar um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU.
O analista Bernardo Nigri, da BMJ Consultores Associados, entende que Bolsonaro pode usar a viagem como pretexto para afastar a ideia de que o governo esteja isolado, como sugerem críticos. "É uma oportunidade para tentar mostrar que [o Brasil] não é um pária internacional e que a política externa ainda tem alguns avanços possíveis, embora seja, realmente, um momento delicado", pondera.
No cenário interno, Nigri também entende que Bolsonaro pode colher frutos junto ao eleitorado. "Em 2018, a política externa foi uma ferramenta muito utilizada para puxar esse eleitorado ideológico", destaca. Para ele, a aversão do eleitorado do presidente a Biden e o apreço pela defesa de Putin a pautas conservadoras podem gerar um fator que seja positivo ao presidente na política doméstica.
Além disso, Nigri entende que o governo pode aproveitar a viagem para negociar com a Rússia o apoio pela reforma do Conselho de Segurança da ONU, uma das principais pautas defendidas pelo Brasil nas Nações Unidas. "O Brasil sempre teve trânsito para jogar nos dois lados e agora tem, sim, uma oportunidade para jogar nos dois lados", diz. "Mas esse é um jogo muito difícil de jogar. É uma oportunidade, porque constrói pontes, mas há tendências de longo prazo, o jogo também pode mudar rápido se escalar o conflito", alerta.
O analista político Ricardo Mendes, diretor da Prospectiva Consultoria, discorda da versão que o Brasil esteja isolado no cenário externo por não ser um momento de grandes cooperações internacionais, mas concorda com a leitura de que o Brasil possa tirar proveito do momento. "O Brasil pode ir à Rússia e pedir apoio ao Putin [para a reforma do Conselho de Segurança], e depois se sentar com o Biden e dizer que 'bate' mais duro na Rússia em troca desse apoio. O Itamaraty sabe fazer isso", analisa.
O que pensam lideranças no Congresso sobre a viagem à Rússia
O deputado federal Fausto Pinato, presidente das frentes parlamentares do Brics e da Brasil-China, prega cautela a Bolsonaro. "O presidente vai ter que ter muito cuidado para não criar celeumas com a Otan e os EUA, nem com Putin", destaca. O parlamentar defende a viagem do presidente ao país aliado, mas prega o estrito pragmatismo durante a visita.
"Ele tem que levar uma pauta propositiva e se furtar de entrar em temas polêmicas e desnecessários que possam magoar os EUA e a Rússia", destaca Pinato. Para o parlamentar, que é membro da Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional (Creden) da Câmara, é possível Bolsonaro aceitar o convite de Putin sem desagradar Biden. "Uma coisa é defender a relação comercial do Brasil com um aliado, outra coisa é defender o regime", justifica.
O parlamentar ressalta, contudo, o temor de que Bolsonaro crie tensões entre Rússia e EUA. "Em outras ocasiões, ele já causou, por exemplo, um constrangimento desnecessário entre judeus e árabes quando falou em transferir a embaixada [brasileira] para Jerusalém. O Brasil não tem que se meter nas relações geopolíticas", defende Pinato. "O Brasil é um país de diálogo, da construção, e não da divisão. Só espero que Bolsonaro não troque e não se indisponha mais com países estratégicos", acrescenta.
O deputado Rubens Bueno (Cidadania-PR), 1º vice-presidente da Creden da Câmara e signatário da Frente Parlamentar Brasil-Rússia, entende ser inoportuna a viagem de Bolsonaro neste momento. "Se há uma tensão muito grande, e isso pode provocar desdobramentos mais graves, não é uma figura como esse, um presidente incendiário, que vai ajudar. Ao contrário, ele não tem equilíbrio, bom senso e não tem responsabilidade", analisa.
"É uma pena que o Brasil pode entrar em uma dividida em um momento tão grave como esse, com uma figura tão despreparada e desqualificada como o presidente da República", critica Bueno, que, em 2021, destacou em discurso na Câmara os 130 anos da imigração ucraniana para o Brasil e o 30º aniversário da Renovação da Independência da Ucrânia.
Já o deputado Coronel Armando (PSL-SC), 2º vice-presidente da Creden, diz ter conversado em dezembro com o embaixador russo e afirma que a expectativa de Putin é que a ida de Bolsonaro apenas melhore as relações internacionais, econômicas e culturais entre ambas as nações.
"De maneira nenhuma estaremos apoiando país A ou B, uma intervenção militar ou ações armadas em outro país. O que o Brasil discute na Rússia são ações econômicas. Nessa parceria, eles nos buscam porque também somos uma potência regional na América Latina, a segunda potência da América, com potencial para virar uma superpotência", destaca.
Vice-líder do PSL na Câmara e ex-líder do governo na Câmara, Armando destaca que o Brasil precisa ter relações internacionais com todos os blocos e vê como natural a viagem que Bolsonaro fará à Rússia. "Nós pertencemos ao Brics. A Rússia é participante desse bloco e, como potência militar, é a mais importante que temos no bloco. O Brasil busca um espaço no Conselho de Segurança da ONU, entrou como membro rotativo em janeiro, é reconhecido como um país referência nessa área", avalia o aliado de Bolsonaro.
Quais as chances de um conflito militar no leste europeu
Apesar da escalada de tensão, especialistas avaliam que são improváveis conflitos militares no leste europeu. "Não acredito em conflito. O Biden, até por questão política, construiu a pauta focando na China para ser um contraponto aos EUA e, a partir daí, justificar o gasto do Estado com a política industrial", diz o analista Ricardo Mendes, diretor da Prospectiva.
A leitura feita por ele é de que Biden busca uma posição no xadrez da política externa que o permita manter um relacionamento estratégico com as principais decisões mundiais. "A cabeça dele é muito nessa de ter um inimigo organizado com quem você se encontra e discute coisas, e a Rússia é meio excluída, já não é mais a União Soviética", justifica.
A escalada dos conflitos diplomáticos ou mesmo ataques cibernéticos, contudo, não estão descartadas. "Não acredito em conflito armado, agora, ataques cibernéticos, isso pode ter, sim, como já teve um ataque hacker ao sistema público na Ucrânia", analisa.
O analista Bernardo Nigri, da BMJ, concorda com a leitura. "Uma guerra cibernética é provável, tivemos nas últimas semanas episódios de servidores do governo ucraniano sendo hackeados e a Rússia está sendo colocada como possível culpada. A frente de batalha não é mais na frente institucional e isso até facilita, do ponto de vista do Brasil nesse caso, se colocar numa posição mais neutra", diz.
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