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O diplomata israelense Yossi Shelley assumiu a chefia da embaixada de Israel no Brasil em março de 2017. Mas, desde janeiro de 2019, quando Jair Bolsonaro chegou à Presidência da República, a sua função ganhou uma importância inédita. Além de demonstrar afinidade ideológica com o presidente, Shelley é amigo pessoal de Bolsonaro desde 2017.
Os dois já se encontraram diversas vezes na embaixada de Israel, foram juntos a partidas de futebol, e o embaixador diz que também tem boas relações com os familiares do presidente. Apesar disso, Shelley garante que não usa a amizade para fazer pressão diplomática.
Apesar disso, Israel e o Brasil nunca estiveram tão próximos. "Agora as coisas estão evoluindo", afirma Yossi Shelley sobre a relação com o Brasil. Segundo o embaixador, é a primeira vez que ele vê uma parceria diplomática com os brasileiros em que Israel não sofre discriminação.
Em entrevista exclusiva à Gazeta do Povo, o embaixador de Israel conta como foi sua reação ao saber que um membro do governo Bolsonaro, o ex-secretário de Cultura Roberto Alvim, publicou o polêmico vídeo com referências nazistas. “Quando tem essa porcaria de usar coisas do nazismo, claro que Israel vai reagir. Especialmente quando as coisas acontecem num país aliado”, afirma.
O embaixador também comenta o plano de paz de Donald Trump, presidente dos Estados Unidos, para o Oriente Médio: “não é fácil nem para Israel, mas é um plano bom”. Além disso, fala sobre a possível transferência da embaixada do Brasil em Israel de Tel Aviv para Jerusalém, e expressa sua opinião sobre a demora do governo brasileiro em classificar o grupo libanês Hezbollah como terrorista.
Confira a entrevista na íntegra com o embaixador de Israel no Brasil, Yossi Shelley.
O general do Exército Gerson Menandro Garcia de Freitas foi indicado para ser o embaixador do Brasil em Israel. Conhece o general? O que acha da escolha?
Shelley: Vi seu currículo. Acho que há um grande potencial para continuar a amizade. Por ser um general do Exército, as coisas da segurança pública e institucional, em que Israel é referência, vão ser mais produtivas. É uma excelente escolha.
O presidente Jair Bolsonaro anunciou recentemente a construção no Brasil de uma fábrica israelense que extrai água do ar. A embaixada israelense teve alguma participação nisso?
Shelley: A embaixada sempre faz contatos quando as coisas estão sendo feitas pelo governo. Quando é o setor privado, menos. Na visita do presidente [Bolsonaro] a Israel em abril [de 2019], um dos temas foi a cooperação em água. Já tem alguns equipamentos do Nordeste que destilam a água do rio, dos poços salgados… Agora, estamos trabalhando nessa intenção de abrir uma usina. Tem que saber como será o pedido, o tamanho, alguns detalhes a resolver. Mas basicamente a notícia está certa.
A relação entre Brasil e Israel mudou muito depois que Jair Bolsonaro assumiu a Presidência da República. O sr. poderia descrever a visão que o governo israelense tem do novo governo brasileiro?
Shelley: Nunca vi essas relações. Nunca. Essa é a primeira vez. Há um nível de cultura, de valores compartilhados, e não mais uma política barata. Agora as coisas estão evoluindo. Falamos sobre o que é bom para o Brasil e o que é bom para Israel. Não é mais aquela política em que se discrimina um e se apoia outro.
A criação de um escritório comercial entre Brasil e Israel em Jerusalém tem um caráter simbólico forte, mas quais podem ser os benefícios concretos desse escritório na relação entre os dois países?
Shelley: A abertura do escritório é fundamental para a parceria entre os dois países. Veja quem abre centrais de pesquisa em Israel: Google, Apple, Amazon, Intel… Posso enumerar umas 20. Por que essas empresas fazem isso? Israel é uma referência mundial em negócios, em pesquisa e desenvolvimento. Isso [a abertura do escritório] já devia ter acontecido 20 anos atrás. Agora chegou um governo racional, que está pensando sobre o povo, não sobre a política.
Depois do anúncio do escritório comercial, no começo de 2019, o Itamaraty agiu para preservar a boa relação com países árabes, e o presidente fez uma visita a esses países. Essa relação amigável entre o Brasil e os países árabes causa algum desconforto na relação com o governo israelense?
Shelley: Brasil e Israel são países com soberania para fazer qualquer coisa. Cada país tem que procurar o próprio bem. Eu não vi nenhuma influência dos países árabes na relação entre Brasil e Israel. Ao contrário. Quando os países sabem que o objetivo da relação comercial é fazer negócio, não têm que ser contra. Eles falam: “Ah, se você vai abrir o escritório em Jerusalém, vamos cortar negócios com vocês.” E o que acontece? Nada. Abrimos uma embaixada da Guatemala [em Jerusalém] e disseram: “Ah, a Guatemala vai quebrar… O terror…” O que aconteceu? Nada. Abriu uma embaixada dos Estados Unidos em Jerusalém. O que aconteceu? Nada! São ameaças falsas. Porque os governos têm um objetivo: satisfazer o povo. Cuidar da economia, melhorar a vida do cidadão, melhorar a educação. O que vai atrapalhar se o Brasil vende dez toneladas a mais ou a menos para um país com o qual tem relação? Que as pessoas entendam: a política está fora. O que é bom para o Brasil é bom, e o que é bom para Israel é bom. Se há conflito, cada um faça o que quiser.
A decisão de reconhecer Jerusalém como capital de Israel e transferir a embaixada de Tel Aviv para Jerusalém é uma promessa de Bolsonaro anterior a 2019, mas ainda não foi concretizada. Como o governo de Israel tem lidado com essa aparente indecisão do Brasil?
Shelley: Primeiro, nós vemos que o presidente está fazendo o que ele prometeu na campanha. Ele falou sobre o escritório, e abriu. Ele falou sobre a [reforma da] Previdência e fez. Ele não fez tudo. Mas, para ser o primeiro ano, ele fez bastante. Cada semana tem uma novidade. Esses passos demonstram que um dia ele vai fazer [a transferência da embaixada brasileira para Jerusalém]. Eu acredito nas palavras dele. O que eu falei para ele? Tem a soberania do Brasil. Primeiro tem que fazer o que é bom para vocês. Depois, para outros países. Não misturar a política com outros desejos. Mas, também, cada governo tem sua linha. Esse governo é mais de centro-direita. Claro que ele vai querer fazer coisas que estão alinhadas com isso.
O governo brasileiro ainda não declarou o Hezbollah como um grupo terrorista, mesmo depois que Argentina e Paraguai o fizeram em 2019. Há o interesse de Israel em que isso seja feito de forma mais rápida?
Shelley: Primeiro, o Hezbollah é um grupo terrorista. Ponto. Claro que é bom se for declarar. Acho que o Hezbollah é um perigo mundial. Fez bastantes coisas na América Latina… Na Argentina, a AMIA [um atentado na associação judaica em Buenos Aires, a AMIA, que matou 85 pessoas]. O Brasil sabe o ritmo como vai fazer isso. Vamos esperar. Tem que ver por que ele faz isso. Pode ser que tenha objetivos. Eu acho que, já, já, toda a América Latina vai declarar, não somente o Brasil.
O vídeo do ex-secretário de Cultura Roberto Alvim com referências nazistas repercutiu de alguma forma no governo israelense?
Shelley: Quando tem essa porcaria de usar coisas do nazismo, claro que Israel vai reagir. Especialmente quando as coisas acontecem num país aliado. Se isso acontece no Irã, ok. Acontece pior do que isso em outros lugares. Quando é um país amigo, claro que não ficamos felizes. E, por isso, nós ficamos muito felizes que o presidente teve um ato muito firme, muito sério e muito reto para cortar imediatamente esse negócio. Ele [o ex-secretário Roberto Alvim] sabia? Não sabia? Não tem desculpas; não se faz essas coisas. Para resumir, claro que quando há assuntos mundiais relacionados a antissemitismo, racismo, anti-LGBT, claro que o governo tem que se manifestar.
Houve algum contato da embaixada com o governo de Israel sobre esse vídeo?
Shelley: Eu pedi ao presidente [de Israel], através de seus assessores, uma resposta. Mas não tive tempo para fazer uma reclamação [a Bolsonaro], porque duas horas depois ele [Alvim] foi demitido. Não tive tempo para mandar. O resultado, não posso dizer que foi feliz, mas foi justo.
Alguns órgãos e associações brasileiras de cultura israelita e membros da comunidade israelita no Brasil costumam se declarar contrários ao governo Bolsonaro, mesmo com as demonstrações de apreço do presidente pela cultura de Israel. A que se deve essa oposição?
Shelley: Há variadas ideias na população judaica no Brasil, que inclui brasileiros e judeus. Tem variantes. Tem pessoas que votam na direita, na esquerda… Tem essa variedade. Se você olha Israel, também tem uma esquerda, uma direita, tem centro, tem os religiosos, tudo. Tem que respeitar a opinião das pessoas. Pessoalmente, como embaixador, eu acho que quando as pessoas se manifestam contra um governo que é muito bom na relação com Israel, isso é uma coisa feia. Cada um pensa o que quer. Ok, pode se manifestar. Mas, apesar de tudo, nós somos democráticos, cada um tem seu direito de falar… Às vezes as pessoas não gostam de alguma coisa, mas podem falar. Eu não tenho nada com isso, e não vai parar. O que eu sei sobre as relações entre Israel e Brasil é que agora, nesse período, ninguém tem do que reclamar. Ao contrário, tem que lançar flores para o governo [Bolsonaro].
Algumas reportagens afirmam que o sr. tem uma relação de amizade com o presidente Jair Bolsonaro. A que se deve essa proximidade? O sr. considera que tem afinidade ideológica com o presidente?
Shelley: Quando eu cheguei ao Brasil e conheci o deputado federal [Jair Bolsonaro], a amizade foi desenvolvida em vários encontros. Encontros na embaixada, na data nacional, ele foi em 2017. Não sei se temos as mesmas ideias. Mas, basicamente, ele foi do Exército e eu também, a ideologia dele… Não dá para fazer um matching de 100%, mas tem coisas parecidas: liberdade, ser firme, combater o crime, trabalhar duro, essas coisas. Tenho boas relações com a família dele, os filhos. Sempre estou à disposição para ajudar. Depois que ele assumiu, dei uma ajuda para Brumadinho [Israel enviou tropas para ajudar no resgate de vítimas da tragédia no município, em 2019]. Em cada coisa que está atrapalhando o Brasil, Israel pode ajudar.
Não uso a aliança e a amizade para fazer pressão. Quando me encontro com ele pela amizade, não falamos sobre trabalho. Temos muitos assuntos, sobre futebol, sobre problemas gerais nossos de saúde… Quando estou como embaixador, eu sei meu lugar, não tenho problema com isso.
Como foram as reuniões do Processo de Varsóvia [conferência internacional sobre paz no Oriente Médio, que teve um evento recente em Brasília, do qual Shelley participou]? Alguns analistas classificam o trabalho do grupo como pró-Israel e anti-Irã…
Shelley: Acho que o Processo de Varsóvia foi excelente. Foi uma discussão muito frutífera. Países que têm diferenças estavam sentando à mesma mesa. O único objetivo foi [discutir] como podemos ajudar os refugiados e as crianças que não podem estudar durante a crise. Falamos sobre três países: Iêmen, Síria e Iraque. O Irã é sempre um perigo mundial, mas não falamos sobre o Irã nesses três dias. Falamos sobre os refugiados e como podemos ajudar com programas, dinheiro… Estou muito feliz de ter podido participar e compartilhar. Nós fazemos muito pelos refugiados na fronteira da Síria. Hospitais, tudo isso. O problema do Irã não é só um problema de refugiados. É um regime tirano, não acredita em direitos humanos. Estão matando pessoas, [população] LGBT… É um país péssimo. Todo o mundo tem que se unir contra esse totalitarismo.
O que o sr. achou do plano de paz para o Oriente Médio apresentado recentemente pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump?
Shelley: O plano não é fácil nem para Israel. Mas é um plano bom. Depois de 1967, houve vários planos pouco realistas, que discriminavam Israel. Agora, há um plano que não é fácil, nem para nós – pode ser mais difícil para os palestinos, mas [eles] têm que sentar [para negociar]. Cada plano que existiu durante esses anos, todos foram rejeitados. O que acontece? Não tem um plano que vai satisfazer você 100%. Não tem negociação em que um ganhe tudo e outro perca tudo. Eles não querem sentar. Qual é o problema desse conflito? A liderança dos países palestinos não quer sentar e não recebe apoio dos outros países árabes, infelizmente. E o que acontece? Acontece essa negligência, essa pobreza…
Como estão as relações comerciais entre Israel e Brasil atualmente?
Shelley: Hoje, há mais de 300 empresas de Israel que atuam no Brasil. Tem projetos entre os governos em segurança pública, tecnologia (como drones e satélites), agricultura, o da água… Mas esse é só o primeiro ano que tem um governo [no Brasil] alinhado ao governo [de Israel]. Os projetos não vão sair em um ano. Os projetos vão levar dois, três anos. Tem que tomar decisões, tem que tocar toda a agenda. Antes disso, quase não tinha projetos Teve alguns do Exército, porque em segurança todos sabem que têm de ser amigos de Israel. Mas ficou um pouco fora do radar, tudo obscuro, sem divulgação… Acho que, se você esperar mais dois anos, você vai ver bastantes projetos [de parceria entre Brasil e Israel].