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A banalidade do mal
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Finalmente fui ver o filme Hannah Arendt, de Margarethe Von Trotta com impecável desempenho de Barbara Sukowa. Um relato sucinto do instigante momento em que a filósofa teve seu insight sobre a “banalidade do mal” durante o julgamento do nazista Adolph Eichmann.

Com debates profundos sobre a natureza do mal, o filme faz o espectador sair refletindo sobre inúmeras questões e dilemas morais. O grande desafio de Hannah, quando se voluntariou para acompanhar o julgamento do nazista e escrever uma série de textos para a revista The New Yorker, foi compreender como alguém tão medíocre fora capaz de realizar atos tão cruéis.

O que ela constatou gerou enorme polêmica e praticamente a transformou em uma pária para o próprio povo judeu. Ela reduziu o papel de monstro mefistofélico de Eichmann, concluindo que ele era apenas um idiota qualquer, como tantos outros, seguindo ordens. Um burocrata que encarava a lealdade a suas funções como a coisa mais relevante do mundo. Isso, para muitos, soou como uma defesa imperdoável que aliviava a responsabilidade do monstro.

A verdade é que os seres humanos buscam a intencionalidade em atos grandiosos, seja para o bem ou para o mal. Mas nem sempre ela precisa estar presente. Um homem que se jogou no trilho do trem e salvou uma pessoa que estava prestes a ser destroçada, disse depois em entrevista que agiu praticamente por instinto, e que não podia deixar suas filhas, ao lado na cena, testemunharem algo tão horrendo. O suposto altruísmo dele pelo completo estranho saiu um pouco arranhado na explicação. Mas o ato deixa de ser nobre por isso?

Para atos monstruosos o mesmo pode acontecer. O burocrata, agindo quase como um autômato, suspende seu próprio julgamento, seu pensamento independente, seu critério moral, e se exime da responsabilidade, pois está somente “seguindo ordens”. E, com isso, ele pode contribuir para coisas realmente terríveis, sem culpa, sem dor na consciência.

Alguns testes de neurocientistas mostraram que vários indivíduos dão choques elétricos em um desconhecido até um patamar que, supostamente, poderia o levar a morte. A vítima, parte do experimento, fica em outra sala e começa a berrar cada vez mais, à medida que a cobaia vai intensificando o choque sob o comendo do realizador do teste. Nem todos – ou poucos – param de puxar a alavanca independentemente das ordens para continuar. Há alguém mandando, logo, não há responsabilidade envolvida.

Esse tipo de situação, conforme percebeu Hannah Arendt, desumaniza o ser humano. Quando ele deixa de julgar por conta própria entre certo e errado, entre feio e belo, ele abandona a principal característica que nos torna humanos. Um robô segue ordens sem questionar. Um ser humano não. Ou não deveria. E foi essa atitude que fez de Eichmann, um “ninguém”, um qualquer como tantos outros, colaborar para a morte de milhares de judeus inocentes.

O outro dilema suscitado no filme, e que foi o maior responsável pela fúria que Hannah atraiu para si, diz respeito ao fato de ela ter mencionado que alguns líderes judeus facilitaram a organização para o extermínio do próprio povo. Se este fosse mais desorganizado, caótico e horizontal, talvez haveria menos mortes. Mas algumas lideranças judias acabaram cooperando com o inimigo. No filme, a filósofa questiona se entre a resistência impotente e a cooperação nefasta, poderia existir alguma alternativa qualquer.

Não é simples julgar nesse contexto. Podemos pensar hipoteticamente – e isso nem de perto se compara ao real – quantos de nós, por exemplo, abrigaríamos judeus clandestinamente em nossas casas, colocando em risco nossa própria família. Até que ponto a coragem nos levaria a um ato desses, de martírio? Ou quantos desafiariam a máquina assassina de Hitler para proteger princípios, em vez de a própria vida?

Alan Riding, em Paris: A Festa Continou, mostra como vários franceses acabaram colaborando com o regime de Vichy, sacrificando inúmeros judeus, inclusive conhecidos ou crianças. Complicado julgar…

Hannah Arendt, em minha opinião, não inocenta hora alguma Eichmann. O que ela faz é mostrar que havia um grave problema na largada, pois era todo um regime cruel e assassino sendo julgado, mas tinha somente um homem imbecil sentado ali diante dos jurados. Claro que ele merece a mais severa punição. Na verdade, nenhuma punição seria adequada, justa ou suficiente para seus crimes. Mas o fenômeno que Arendt trouxe à tona é maior, mais complexo, o que contraria aqueles que buscam a visão maniqueísta de bom e mau, típica dos desenhos infantis.

Dito isso, afirmo que é preciso julgar. Uma sociedade só pode conviver com razoável grau de paz e ordem se os erros forem punidos, e os acertos premiados. A ideia de livre-arbítrio, de responsabilidade por nossas escolhas, é fundamental. Sem ela, justificamos qualquer coisa, e ao fazermos isso, estamos igualando os merecedores de respeito e os de repúdio. A pior banalização do mal que pode existir é justamente encará-lo como algo exógeno ao homem, como algo involuntário, que não lhe deixa nenhuma escolha.

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