Imagine o leitor o seguinte diálogo entre dois vizinhos:
Fulano: Eu quero te destruir, quero toda a vizinhança só para mim, sob as minhas regras e crenças.
Sicrano: Mas qual o problema exatamente? É o meu jardim que lhe incomoda? A forma como corto a grama?
Fulano: Não! É você! Você é o problema! Só vou descansar quando você tiver sumido do mapa.
Sicrano: O que você quer dizer é que não aprova o tipo de música que coloco? É isso? Se eu abaixar um pouco o som, ficaremos bem?
Fulano: Você é surdo? Vou te destruir, não aceito viver num mundo em que gente como você vive, ainda mais do meu lado!
Sicrano: Já sei! Você está incomodado porque meu avô não foi gentil com o seu avô, há uns 40 anos ou mais. É isso? Posso pedir desculpas pelos atos do meu avô e ficaremos bem?
Fulano: Não me importo com seu avô, que nem conheço. Quero fazer você desaparecer da minha frente, para que toda a vizinhança tenha pessoas apenas como eu!
Sicrano: Podemos continuar essa conversa num aprazível chá das cinco na minha casa?
O leitor certamente chamaria os homens de branco para levar Sicrano, ou quiçá torceria para que Fulano executasse sua promessa de uma vez, tamanha a revolta que a estupidez de Sicrano desperta em pessoas normais. No entanto, é essa a postura de parte do Ocidente quando o assunto é terrorismo islâmico. E era essa a postura quando o assunto era fascismo, nazismo e comunismo.
Em Esquerda Caviar, quando tentei levantar vinte potenciais origens para o estranho fenômeno, considerei como um deles justamente a covardia moral, esse medo paralisante que pode levar alguém a tratar bem ou com condescendência aquele que pretende nada menos do que destruí-lo.
Todo tipo de subterfúgio e malabarismo é usado na vã esperança de interpretar diferente aquilo que o próprio inimigo declarado diz com todas as letras, de forma bastante objetiva. O rico capitalista que dá dinheiro para socialistas que dizem desejar a destruição do próprio capitalismo é um caso claro. O pacifista que tenta encontrar em si próprio a causa do terrorismo idem.
Nos 70 anos que marcam o fim da Segunda Guerra, Hitler voltou a ser tema de colunas, e João Pereira Coutinho falou exatamente disso hoje: da covardia moral que fez com que os “apaziguadores” ignorassem todo tipo de sinal e alerta no anseio irracional de que os fatos mudariam se fossem deixados de lado. E fez um paralelo com o terrorismo islâmico atual:
Como foi possível tapar os olhos na década de 1930?
Conheço as explicações tradicionais: a dolorosa memória das carnificinas da Primeira Guerra, que ninguém desejava repetir; a ideia de que a Alemanha poderia ser um mal necessário para controlar a influência bolchevique no continente europeu –tudo isso pode ter paralisado a Liga das Nações e os seus vetustos membros.
Mas é preciso mais que isso: uma certa covardia moral para ver a realidade exatamente como ela é. Uma recusa do literal, digamos, que consiste em negar ao inimigo as intenções claras que ele afirma e pratica.
Escusado será dizer que essa covardia e essa recusa do literal continuam. E se falei dos jihadistas radicais não foi por acaso.
Hoje, os terroristas que matam em nome do Profeta não negam os seus objetivos –e, mais que isso, dizem com todas as letras qual é o programa de festas: a submissão dos infiéis pela força da espada e a reconstrução utópica de um Califado.
Perante isso, a reação da “intelligentsia” ocidental é semelhante à reação dos “apaziguadores” da década de 1930: uns, preferem não ver ou escutar; e aqueles que escutam normalmente apagam as palavras alheias com as suas próprias palavras.
O problema é a pobreza, dizem; ou Israel; ou os Estados Unidos; ou o Ocidente; ou o rato Mickey –tudo, exceto a declaração explícita dos fanáticos de que não admitem negociação ou compromisso.
Em 1945, o mundo tinha 60 milhões de mortos para enterrar. A loucura de Hitler explica muita coisa. Mas a covardia de gente sã, ontem como hoje, explica muito mais.
Como discordar? O covarde moral acha que acariciando um leão raivoso e faminto poderá viver em paz com ele, enquanto a única paz possível, no caso, é se a cabeça do covarde for parar na goela do leão. Ou, claro, se o leão for abatido antes.
Rodrigo Constantino