“As perguntas só são inteligíveis quando sabemos onde procurar as respostas.” (Isaiah Berlin)
Um dos grandes ícones do liberalismo foi sem dúvida o filósofo Isaiah Berlin, nascido na Letônia em 1909. No livro organizado por Henry Hardy, A Força das Idéias, constam diversos textos do autor sobre diferentes temas, desde uma autobiografia até análises do marxismo ou do Iluminismo. O título faz menção ao que o pensador sempre acreditou. Em Dois Conceitos de Liberdade, de 1958, Berlin mencionou o poeta alemão Heine para lembrar que não se deve subestimar a força das idéias: “os conceitos filosóficos nutridos na quietude do escritório de um professor poderiam destruir uma civilização”. Eis o poder que ele depositava nas idéias.
Isaiah Berlin sempre respeitou a pluralidade de idéias, assim como a pluralidade de culturas, mas deixava claro não ser um relativista. Ele acreditava numa pluralidade de valores que os homens podem procurar, mas não acreditava numa infinidade de valores. O número de valores humanos seria finito, e esses valores seriam objetivos, ou seja, sua natureza e sua busca fazem parte do que significa ser humano. Todos os seres humanos devem ter alguns valores comuns, senão deixam de ser humanos. Por isso pluralismo não é relativismo: “os valores múltiplos são objetivos, parte da essência da humanidade em vez de criações arbitrárias das fantasias subjetivas dos homens”. Deve-se, portanto, respeitar os sistemas de valores que não são necessariamente hostis uns aos outros. Daí se segue a tolerância pregada pelos liberais.
Para Berlin, o inimigo do pluralismo é o monismo – “a antiga crença de que há uma única harmonia de verdades a que tudo, se for genuíno, deve se ajustar no final”. A conseqüência dessa crença é que aqueles que sabem devem comandar aqueles que não sabem. Trata-se da antiga crença platônica dos reis-filósofos, que tinham o direito de dar ordem aos outros. Os déspotas “esclarecidos” vão roubar da maioria as suas liberdades essenciais em nome do conhecimento superior que possuem. Se antigamente pessoas eram sacrificadas em nome de deuses, recentemente muitos foram sacrificados em nome de ídolos: os ismos. Socialismo, nacionalismo, fascismo, comunismo – os revolucionários adeptos dessas ideologias se julgam detentores da verdade absoluta, e acreditam que, para criar o mundo ideal que somente eles sabem o caminho, os ovos têm que ser quebrados, senão não se pode fazer a omelete. Os ovos acabam quebrados mesmo, como se verifica pelo rastro infindável de cadáveres sacrificados no altar dessas ideologias. Mas a omelete permanece infinitamente distante. Isso não importa para os fanáticos “donos da verdade”.
Um dos grandes legados do pensamento de Isaiah Berlin foi sua defesa da distinção entre liberdade negativa e positiva. Por liberdade negativa, ele entendia “a ausência de obstáculos que bloqueiam a ação humana”. Existe, claro, os obstáculos naturais, criados pelo mundo exterior, pelas leis biológicas ou psicológicas que regem os seres humanos. Mas sua preocupação estava centrada na falta de liberdade política, quando os obstáculos são criados pelo homem. O grau de liberdade depende então do grau em que cada um é livre para trilhar este ou aquele caminho sem ser impedido de agir desse modo por instituições ou disciplinas criadas pelo homem. Não é apenas a liberdade de fazer tudo aquilo que se aprecia, tampouco de atender todos os desejos existentes. O que ele tinha em mente era o número de caminhos que um homem pode trilhar, quer deseje trilhá-los, quer não. Esse seria o “primeiro dos dois sentidos básicos de liberdade política”.
O outro sentido central de liberdade é a liberdade para, ou seja, a pergunta de quem controla o indivíduo. A questão principal é se o próprio indivíduo determina suas ações, ou se segue ordens de alguma outra fonte de controle. A liberdade positiva, partindo do pressuposto que um determinado grupo sabe melhor o que cada indivíduo quer, pode levar a algumas das formas mais assustadoras de opressão e escravização.
Berlin combateu o determinismo também. Sua tese era de que existem duas razões principais para se defender a doutrina do determinismo humano. A primeira seria uma extrapolação das ciências naturais descobertas pelos cientistas. Muitos philosophes do século XVIII sustentavam isso. A questão não seria se os homens estão livres ou não de leis naturais, mas sim se sua liberdade se dissipa totalmente com elas. A segunda razão para crer no determinismo seria devolver a responsabilidade por muitas coisas que as pessoas fazem a causas impessoais. Assim, eximem-se de culpa. As pessoas não teriam como evitar seus erros. Isaiah cita como exemplo o marxismo, baseado num determinismo histórico, mostrando inclusive a contradição de se arriscar numa perigosa revolução quando o futuro já está determinado. Tanto risco assim apenas para tentar antecipar o que é certo faz sentido?
O filósofo trata de vários outros assuntos, mas o mais importante é ter em mente que Isaiah Berlin se mostrou sempre preocupado com o fundamento do conhecimento, apostando no potencial transformador das idéias. A busca do alicerce dos conceitos, enfrentando suas contradições, foi uma marca do pensador. Ele sugeria que o pensamento sistemático desempenha papel determinante na construção da vida em sociedade. A experiência seria peça crucial nesta construção, para que a abstração não condenasse os pilares da obra toda. Berlin era incapaz de se esconder por trás da opacidade do jargão ou de uma retórica pretensiosa. Para ele, a tarefa da filosofia era “desenredar e trazer à luz as categorias e os modelos ocultos em termos dos quais os seres humanos pensam, para revelar o que é obscuro ou contraditório neles, para discernir os conflitos entre eles que impedem a construção de modos mais adequados de organizar, descrever e explicar a experiência”. Em resumo, a meta da filosofia é sempre a mesma: “ajudar os homens na compreensão de si mesmos e assim operar na claridade, e não loucamente, no escuro”.
Texto presente em “Uma luz na escuridão”, minha coletânea de resenhas de 2008.
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