“O desejo utópico por uma sociedade igualitária não pode ter surgido por qualquer outro motivo que não a incapacidade de lidar com a própria inveja”. (Helmut Schoeck)
Já havia citado o livro Facial Justice, do inglês L.P. Hartley, algumas vezes no blog, como aqui e aqui, usando casos concretos que demonstram como sua distopia, escrita em 1960, mostra-se absolutamente atual. Mas conhecia a trama do livro apenas por meio do excelente livro Envy: A Theory of Social Behaviour, de Helmut Schoeck. Resolvi aproveitar as quase férias para ler o original. Fantástico!
Primeiro o espanto: o livro não é fácil de encontrar, nem na Amazon. Uma versão eletrônica foi lançada apenas em setembro de 2014. Comprei o meu exemplar usado mesmo, com capa esfacelada e páginas amareladas. Uma distopia quase do mesmo nível de 1984, de Orwell, ou de Admirável Mundo Novo, de Huxley, mas totalmente desconhecida do grande público, ignorada. Uma pena, e fica a dica para as editoras brasileiras traduzirem a obra para o português (parece que já houve uma edição traduzida no passado).
A trama: após a Terceira Guerra Mundial, nuclear, quase 90% da população é dizimada, e o restante passa a viver no subsolo. Até que, guiada por uma criança, uma parcela resolve subir à superfície e viver ali, em meio aos destroços e à terra acinzentada que sobrou após a guerra. Eles vivem em um regime centralizador, sob o comando do Ditador, de quem conhecem apenas a voz.
O grande tema do livro é a obsessão pela igualdade. Existia naquela sociedade o E bom e o E ruim, um para “Equality” e o outro para “Envy”. Tudo era feito para evitar o E ruim e para valorizar o E bom. Esse Novo Estado faria de tudo para evitar as velhas causas que supostamente destruíram o mundo antigo. E, para combater a inveja, o Ditador não media esforços: o coletivismo era total e até mesmo as diferenças físicas precisavam ser eliminadas ou mitigadas. Ninguém poderia ser um privilegiado.
Afinal, a beleza, especialmente a feminina, era grande fator de inveja na sociedade. Por isso as mulheres deveriam ser “betificadas”, ou seja, transformadas em Beta, o padrão médio (de onde deriva o termo medíocre). As mulheres com beleza tipo Alfa eram estigmatizadas, sentiam-se culpadas, e as mais feias, do tipo Gama, tinham a oportunidade de fazer a operação e se tornar Betas também (o que não impedia o preconceito das Betas originais contra elas). O ideal era a padronização, a igualdade plena.
O desenrolar da trama se passa quando Jael 97 (todos eram conhecidos por números após o nome), uma “quase Alfa”, desiste da cirurgia que a transformaria em Beta, como todas as demais. Mesmo tendo absorvido automaticamente os slogans coletivistas do regime, de que é “pecado” tentar se destacar perante os demais, e alimentando forte sentimento de culpa por sua natureza superior, Jael acaba resistindo, e com isso vai se transformando numa revolucionária contra o sistema.
É uma heroína por ocasião, alguém que se depara com sentimentos conflitantes e começa a descobrir a importância de sua própria identidade, de sua liberdade de escolha, de seus pensamentos e de seu rosto singular. As Betas pareciam todas iguais, sem expressão, sem distinção. Tudo precisava ser nivelado para ofuscar o que era melhor e evitar a maldita inveja, causa de tanta discórdia no mundo antigo.
Não havia altura também, pois tudo tinha sido destruído na guerra, à exceção da principal torre da Ely Cathedral, que milagrosamente sobreviveu. Foi ao olhar para cima pela primeira vez e se encantar com aquele monumento ao que é grande e belo que Jael se deu conta de que era preciso lutar contra a igualdade e a padronização. Tampouco havia velocidade, pois era perigoso e fora a causa de muitas mortes no passado. A covardia e o medo fizeram com que aquela sociedade tentasse abolir o risco.
Hartley capturou bem o zeitgeist dos anos 1960, e extrapolou as demandas igualitárias ao absurdo, para demonstrar como levariam ao caos. O politicamente correto no uso das palavras também é parte essencial de seu livro, tudo feito para evitar ofensas às sensibilidades alheias. Nos hospitais, por exemplo, todas as pacientes recebiam do Estado flores de plástico exatamente iguais, para que ninguém pudesse se sentir preterida ou menos amada.
A inteligência acima da média, a beleza acima da média, tudo tido como superior era condenado pelo regime coletivista, em sua busca incansável pela igualdade plena. Claro, não para todos. Havia a figura do Ditador e seus Inspetores, homens Alfa, gozando de poderes e privilégios fora do alcance dos demais. E todo regime igualitário e coletivista, na prática, não produz sua casta privilegiada, sua nomenklatura? Fidel Castro é igual aos cubanos comuns em Cuba, por acaso?
Mérito, competição, diferenças, essas eram as palavras que deveriam ser abolidas da língua, em troca da harmonia possível apenas com todos iguais. Aliás, a língua também seria nivelada por baixo, para não gerar constrangimento aos incapazes de maior erudição (soa familiar?). O resultado prático: o reino da mediocridade, sob o comando de um seleto grupo privilegiado. E não é exatamente isso que o socialismo sempre produziu?
Rodrigo Constantino