O tema da desigualdade continua em alta, martelado por uma turma que condena o próprio capitalismo ou o mercado pela pobreza espalhada no mundo, de preferência atacando mais os ricos do que mostrando como reduzir a miséria. O relatório da ONG Oxfam levou ao delírio os seguidores de Thomas Piketty, e já foi devidamente rebatido aqui, por Flavio Morgenstern. Acabo de ler o pequeno livro On Inequality, de Harry G. Frankurt, que tem bastante a agregar ao debate. Foi sugestão de João Pereira Coutinho, cuja resenha já toca nos pontos principais:
A principal conclusão de Frankfurt é que aquilo que devemos considerar “imoral” não é a desigualdade “per se”. O que é relevante é a existência de pobreza. Ninguém se comove com a desproporção entre a fortuna de Ronaldo e o meu conforto tipicamente “burguês”. Coisa diferente é saber que o meu vizinho não tem o que comer ou vestir.
Consequentemente, Frankfurt afirma —e bem— que a política deve abandonar as suas fantasias igualitaristas e concentrar-se numa “doutrina da suficiência”, um conceito muito mais complexo de realizar do que simplesmente dividir o bolo em fatias rigorosamente iguais.
O objetivo não é todos terem o mesmo —uma “engenharia social” que leva ao desastre porque os recursos são limitados. O objetivo é todos terem o suficiente. E o que é “suficiente”?
A resposta a essa pergunta leva-nos à segunda crítica que Frankfurt dispara contra o igualitarismo. Porque o problema do igualitarismo é pensar a situação dos mais pobres sempre em relação aos mais ricos. Uma “doutrina da suficiência” prefere olhar para as pessoas a partir das suas circunstâncias e necessidades pessoais.
Há pouco a acrescentar aqui. Inclusive no que diz respeito às falhas do livro que, até pelo tamanho, deixou de fora muita coisa sobre o polêmico assunto. A começar pelo aspecto econômico vantajoso das desigualdades para a própria criação de riqueza, já que indivíduos reagem a incentivos e os resultados desiguais de conquistas individuais são parte essencial do que chamamos meritocracia de mercado. Ataque isso e estará condenando o progresso, de todos.
Frankfurt não chega a condenar medidas políticas que visam à redução das desigualdades; ele apenas afirma, com embasamento, que elas não devem ser defendidas com base no argumento supostamente moral da igualdade, e sim com base no pragmatismo, com outras finalidades em vista, das quais a redução das desigualdades não passa de um meio derivado.
Como, por exemplo, a excessiva influência política que a concentração de riqueza pode gerar. No caso, julgo o argumento falho, ou desviado do foco, pois o problema aqui não é a concentração de riqueza em si, mas sim o instrumento político permitir tanta intervenção e controle em assuntos demais. Ou seja, não é a concentração de riqueza que explica a “escolha dos campeões nacionais” na era lulopetista, e sim o instrumento BNDES nas mãos da classe política, para ela ser cooptada pelos grandes empresários.
Outro ponto contestável, e que fica sem maiores explicações, é quando o autor diz que devemos combater tanto a miséria quanto a riqueza excessivas. A miséria todos entendem, e concordam. Mas por que deveríamos combater a riqueza excessiva? Há argumentos filosóficos sobre os riscos dessa fortuna no caráter das pessoas ou no funcionamento da política, como vimos, mas não são convincentes a ponto de demandarem medidas “corretivas”. Deve Bill Gates ter parte da sua fortuna subtraída compulsoriamente para que ele não possa influenciar mais a política? Não custa lembrar que ele costuma defender igualitários como Obama com sua fortuna…
No mais, se o Tio Patinhas quer acumular cada centavo extra só para ver a pilha aumentando, o problema é dele. A ambição desmedida é algo lamentável do ponto de vista individual, mas não cabe ao estado paternalista proteger o indivíduo disso. E ao aceitarmos a premissa óbvia de que riqueza não é um jogo de soma zero, estático, em que José, para ficar rico, precisa tirar de João, então não há porque condenarmos a riqueza excessiva. O foco deveria ser sempre na pobreza excessiva.
Frankfurt adota postura benevolente para com os igualitários, assumindo que sua demanda por igualdade de resultados deriva de um equívoco bem-intencionado, não da idealização da inveja. As pessoas olham a pobreza à sua volta, depois olham ricaços levando uma vida de filme, e concluem que a desigualdade é o problema, quando na verdade ele está na condição absoluta de pobreza, não na comparação entre ambos.
Não estou tão seguro assim de que igualitários são seduzidos apenas por tal equívoco. Uma boa parte sim, acaba aderindo ao igualitarismo por isso. Mas outra parte não desprezível sabe que o pobre não é pobre porque o rico é rico, e mais ainda, sabe que tirar do rico para dar ao pobre não vai resolver nada. Mesmo assim prega a igualdade, pois no fundo não suporta as diferenças, mesmo quando todos possuem um padrão de vida aceitável. Esses são casos patológicos, de pura inveja ou ódio às diferenças, pois elas remetem ao seu próprio complexo de inferioridade. O igualitarismo anula o indivíduo, e isso seduz muito indivíduo inseguro, infeliz ou complexado.
A “doutrina da suficiência” de que Frankfurt fala foca no principal aqui: as preferências são subjetivas. Sua principal crítica filosófica parece ser a obsessão com a qual tantos passaram a olhar apenas para dados relativos, em vez de olhar o que cada um quer, ou mais, merece. Um sujeito pode estar bem, satisfeito com sua vida, mesmo com menos do que muitos aceitariam. Pode ser racional para ele não sacrificar tempo, lazer ou outros bens para conquistar ainda mais poder aquisitivo, mesmo que ele obtivesse maior utilidade com tais recursos extras.
A comparação que Frankfurt faz, para sair do aspecto apenas monetário, é com uma pessoa satisfeita com seu casamento. A maximização da felicidade poderia levá-la, racionalmente, a buscar sempre mais, um parceiro ou parceira ainda melhor ou mais adequada. Mas quem poderia dizer que é irracional aquele que se dá por satisfeito com um bom relacionamento, que o traz felicidade genuína, em vez de ficar sempre buscando somente “maximizar sua felicidade” a cada momento?
Outra abordagem possível para criticar o igualitarismo, deixada de fora do livro, é a escolha do que será usado como base de comparação. Vamos supor que o foco não seja o nível absoluto e subjetivo de satisfação, e sim um relativo. Por que deve ser contra seus vizinhos? Por que o negro americano, digamos, vai comparar sua renda média com a do branco americano, e não com a do negro africano ou o branco brasileiro? Por que não deve alguém comparar sua condição de vida com a de seus antepassados? Ou seja, mesmo quando o foco é o relativo, resta a questão de qual será a base de comparação escolhida, o que faz toda a diferença. Vivemos com bem mais conforto do que nobres do passado, e ainda assim reclamamos porque alguns têm mais ainda?
O livro conta com uma parte sobre o argumento da utilidade marginal decrescente, usado por muito igualitário para justificar medidas distributivas. O autor refuta tal argumento e dá alguns exemplos interessantes, apesar de ser um trecho mais enfadonho da leitura, para quem não é da área econômica. O essencial a ser resumido aqui é que não há garantia alguma de que tirar de quem tem mais e dar para quem tem menos iria aumentar a “utilidade geral”, mesmo que fosse possível calcular algo dessa natureza.
O mais importante do ensaio de Frankfurt, em minha opinião, é seu louvável esforço de retirar o foco obsessivo na desigualdade, doença moderna que pode ser observada pelo sucesso de vendas do livro de Thomas Piketty, e colocá-lo no nível absoluto de pobreza e no que cada um considera suficiente para sua qualidade de vida. Ao só olhar para as comparações com os mais ricos, os igualitários acabam estimulando um vazio existencial e materialista, onde apenas o status importa, onde a minha satisfação passa a depender do que o meu vizinho tem, não do que eu mesmo considero bom para mim.
O segundo ponto crucial é a distinção entre tratar alguém com igualdade e tratá-lo com o respeito merecido. A igualdade de resultados não enxerga o indivíduo, com seus méritos e deméritos, enquanto o respeito exige foco naquilo que cada um realmente possui de valor. Para igualitários coletivistas, indivíduos são todos indistinguíveis, uma massa monolítica. Olhar com respeito significa olhar para as particularidades de cada um. Coutinho resume muito bem esse ponto:
[…] concordo com Frankfurt sobre a importância de discriminar na hora de distribuir o bolo. Mas essa discriminação não deve ser apenas material (dar mais bolo ao faminto, por exemplo). Deve ser também moral. Existe uma diferença entre o faminto que não consegue encontrar emprego; e o faminto que simplesmente não quer trabalhar. A minha fatia extra de bolo só iria para o primeiro, não para o segundo.
Em suma, não há nada que diga que a igualdade de resultados é um objetivo filosoficamente moral, como alegam tantos de seus defensores. Ao contrário: o que podemos ver é que há moralidade na própria desigualdade, e que o foco de todos deveria se voltar para o nível absoluto de pobreza em que alguns vivem, não por falta de medidas igualitárias, muito menos pelo capitalismo liberal, e sim pelos vários obstáculos criados quase sempre pelo próprio governo ou pela falta de liberdade econômica.
Rodrigo Constantino
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