“Em uma sociedade em desenvolvimento, qualquer restrição à liberdade reduz o número de coisas testadas e, portanto, reduz a taxa de progresso.” (H. B. Phillips)
Entre os grandes defensores da liberdade que o país já teve, encontra-se José Guilherme Merquior, que foi diplomata, sociólogo, filósofo e membro da Academia Brasileira de Letras. Ele se considerava um “social-liberal”, defensor do que chamava de “liberalismo moderno”. No livro A Natureza do Processo, o escritor aborda o tema do progresso, com foco na economia e na liberdade. Ele compara também o sistema de mercado com o socialista, trata da democracia e critica o papel de certos intelectuais na modernidade. O livro foi dedicado ao “fantasma” de Irineu Evangelista de Souza, o barão de Mauá, um dos maiores ícones do empreendedorismo nacional. É importante destacar que a obra foi escrita no começo da década de 1980, antes da queda do Muro de Berlim e quando as idéias socialistas ainda eram muito populares por aqui. Isso apenas aumenta o valor do autor, pela sua defesa da liberdade em um ambiente hostil a ela.
Merquior começa o livro destacando o extraordinário avanço da técnica, capaz de reduzir o desconforto dos homens e aumentar excepcionalmente as taxas de sobrevivência e longevidade. Esse bem-estar, produto da era vitoriana industrial, tornava-se então algo partilhado, no essencial, pelas classes médias do mundo. “O luxo de ontem virou o conforto ao alcance de muitos”, como ele explica. A liquidez, ou disponibilidade de recursos financeiros em países enriquecidos pelo comércio, ao lado da ciência, ou o avanço do conhecimento, dirigiram o norte da Europa para a mecanização da indústria, permitindo tal progresso. Na sociedade industrial, passou a ocorrer muito mais mobilidade social, diferente da Idade Média, onde todos os ricos eram herdeiros. Merquior conclui: “Na sociedade moderna, a posição do indivíduo não é predeterminada; a desigualdade deixou de ser um destino”.
Muitos criticam os duros anos de trabalho pesado durante a Revolução Industrial, ignorando que a grande massa, antes, estava entregue à desocupação e à maior penúria. Esquecem que o salto populacional durante esse período ocorreu justamente pela maior criação de riqueza, e que muitos críticos do capitalismo nem mesmo estariam vivos não fosse por ele. Para Merquior, “não há como idealizar a cultura camponesa tradicional”, já que longe de ser idílica, ela “era geralmente uma coleção de carências, obscurantismo e violências”. Os filmes românticos que tratam do passado costumam ocultar essa triste realidade. Se viver era duro nos primeiros anos da industrialização, sobreviver era muito complicado antes dela. Os críticos do progresso, conforme compara Merquior, seriam como aquela definição do conservador: alguém que é pessimista quanto ao futuro, mas muito otimista quanto ao passado…
O progresso, é preciso lembrar, não é uma necessidade da natureza, parte de um processo evolutivo inexorável. Merquior, seguindo a linha de Hayek, acreditava que o progresso “sempre dependeu muitíssimo do fato de que o homem não é capaz de controlar plenamente a conduta social”. Cada indivíduo, ao perseguir seus próprios objetivos, faz uso de muito mais conhecimento do que adquiriu sozinho. Há que se confiar, portanto, na liberdade individual, sem que possamos ter previsibilidade das conseqüências de todos os nossos atos. Isso vai contra a idéia nefasta de submeter todo o processo social a uma prévia determinação, supostamente inspirada em nobres ideais e sábios “iluminados”. Em resumo, “o progresso é um crescimento cumulativo que jamais poderia ser totalmente planejado”. Nesse sentido, o progresso é um processo de adaptação bem sucedida, não um “construto laboratorial”.
O livro condena também os ambientalistas alarmistas, assunto cada vez mais em voga. Merquior entendia que a ecologia responsável nada tem a ver com a mentalidade anti-progresso do ecologismo, definida por ele como “ideologia primitivista cheia de animosidade arcaizante contra a civilização tecnológica”. A angústia ecológica condena o progresso e repudia a civilização moderna, enquanto a técnica vai libertando as massas de tantas carências básicas. Se antes muitos anti-capitalistas condenavam o regime pelo seu suposto fracasso em tirar as massas da miséria, agora muitos atacam o capitalismo, paradoxalmente, pelo seu sucesso. Ele geraria riqueza demais para que o planeta possa suportar. O compromisso com os fatos não é regra nesses neo-malthusianos, ainda que seja curioso imaginar como Malthus reagiria se lhe dissessem que o planeta teria seis bilhões de habitantes no futuro, sem que faltasse comida. Aqueles que profetizam o constante apocalipse costumam ignorar a capacidade humana de adaptação e o avanço da técnica.
Na questão econômica, Merquior é claro ao condenar o dirigismo estatal praticado pelo socialismo contemporâneo. A economia tem sido a mola principal do progresso, e para o autor, não basta condenar o autoritarismo do estado totalitário; “é preciso denunciar também o antieconomismo de sua ideologia”. O “princípio do comércio”, muito mais que o “princípio da conquista”, tem sido o grande responsável pelos saltos de produtividade. A economia, e não a guerra, “foi o veículo institucional do salto para o progresso enquanto condição permanente da civilização”. O livre mercado é que garante o uso mais efetivo dos fatores de produção, sendo o meio mais racional de distribuir recursos e dirigir investimentos. O lucro é “o melhor indicador da minimização dos custos”. A escolha dos consumidores entre vários produtos é o que garante a evolução constante. Nenhum plano econômico, por mais sofisticado que seja, consegue acompanhar o ritmo da inovação tecnológica e os movimentos flutuantes da demanda.
Merquior condena a visão comum de que a propaganda é onipotente, enganando os consumidores. Ele lembra da quantidade de campanhas publicitárias fracassadas, e afirma que a evidência empírica não confirma os temores dos críticos do mercado quanto à manipulação da consciência individual na sociedade de consumo. Isso para não falar que a via política estaria ainda mais sujeita a este tipo de manipulação, e o remédio para um suposto mal seria muito pior que o próprio mal. Merquior conclui que “a história econômica dá razão a von Mises: geralmente falando, numa economia de comando, os governos nunca asseguram decisões econômicas racionais”.
O autor segue sua análise criticando diferentes vertentes da mentalidade dirigista, alegando que a teoria da dependência, comum em seu tempo, é “claramente ideológica”, sendo apenas uma transferência da visão marxista de luta de classes para o âmbito internacional. Merquior condena os igualitários também, aqueles que acreditam que justiça é realizar uma sociedade de iguais, e não de homens livres. Ele diz: “O igualitarismo da retórica dos regimes socialistas não agüenta a acareação com a realidade”. Cita a nomenklatura soviética para reforçar o mito por trás dessa crença. Como conclusão, o igualitarismo pratica o que a distopia de Orwell enfatiza: todos são iguais, mas uns são bem mais iguais que os outros…
Outra questão atual abordada no livro diz respeito ao aspecto da democracia. Merquior era um democrata, mas compreendia que a democracia não deve ser apenas um processo decisório da maioria. Como precondições da democracia estão, por exemplo, as liberdades de expressão e associação, os mecanismos institucionais de controle do governo e de sucessão etc. O princípio da subsidiariedade e a desconfiança em relação ao governo estavam presentes na cabeça de Merquior, que citou a frase de Lord Acton onde este diz que “é mais fácil encontrar gente apta a governar-se a si mesma do que gente apta a governar os outros”. O constitucionalismo estaria na base do liberalismo, portanto, reconhecendo a constante necessidade de limitar o fenômeno do poder. A importância do império da lei é total, e no debate entre governo platônico de sábios ou governo aristotélico das leis, Merquior não mostrava dúvida de qual lado defendia: “o império da lei é justamente o que compatibiliza o princípio da ordem com o ânimo individualista da cultura moderna”.
O último capítulo do livro é dedicado ao ataque que os pensadores famosos da contracultura fazem ao progresso e à razão. Como alvo de uma análise mais profunda foi escolhido o “primeiro guru da contracultura”, Marcuse. Mas Merquior engloba na crítica toda a Escola de Frankfurt, os novos marxistas que condenam o “sistema” de forma irresponsável e especulativa. Para Merquior, esse tipo de ataque amplo e vago poupa o trabalho de analisar criticamente os componentes, parte por parte, circunstância por circunstância. Esses “profetas” abstrusos não têm compromisso algum com a objetividade e a verdade. Merquior desabafa: “Nosso tempo necessita de Voltaires, não de Marcuses”.
Em resumo, a liberdade vem aumentando, mas esse processo não é uma garantia da natureza. Houve um aumento quantitativo e qualitativo da liberdade. Temos liberdade para muitos mais do que antes, e uma liberdade múltipla e diversificada. Mais liberdade e mais gente livre. “A natureza do processo é o progresso da liberdade”, diz Merquior. Os homens precisam aguçar o espírito crítico e abandonar a mentalidade niilista em que o mundo mergulhou. De forma geral, como explica Merquior, os homens se dotam dos mecanismos do progresso selecionando, criando e adaptando instituições. A liberdade individual é crucial nesse processo.
Texto presente em “Uma luz na escuridão”, minha coletânea de resenhas de 2008.
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