“Pelo necessário, o homem é capaz de matar; pelo supérfluo, é capaz de morrer.” (Carlos Lacerda)
Um curso desenvolvido em 1933 pelo pensador espanhol Ortega y Gasset acabou virando livro, sob o título Meditação Sobre a Técnica. Nele, o escritor fala sobre o sentido da vida humana e o papel que a técnica exerce nesse contexto. Para Gasset, “é notório que no homem os instintos estão quase apagados, pois o homem não vive, definitivamente, por seus instintos, mas se governa mediante outras faculdades, como a reflexão e a vontade, que operam acima dos sentidos”. O instinto mesmo de sobrevivência, por exemplo, seria negado quando os homens escolhem morrer. O homem vive porque quer. A necessidade de viver não lhe é imposta à força.
O animal está sempre preso às suas necessidades vitais, e sua existência “não é mais do que o sistema dessas necessidades elementares a que chamamos orgânicas ou biológicas e o sistema de atos que as satisfazem”. Mas a vida humana é bem mais que isso. A biologia ocupa-se de uma classe de fenômenos: os orgânicos. Mas a vida humana é aquilo que fazemos e o que nos acontece; é “pensar ou sonhar e comover-se”.
Nossa vida é o que fazemos porque nos damos conta de que o fazemos. Para Gasset, “viver é um não contentar-se em ser, mas compreender e ver que se é um incessante descobrimento que fazemos de nós mesmos e do mundo que nos rodeia”. O homem não é a sua circunstância, ele apenas está submerso nela e pode ocupar-se de coisas que não sejam atender diretamente os imperativos ou necessidades de sua circunstância.
Os atos dos homens, portanto, modificam ou reformam a circunstância ou natureza. Nela passa a existir o que não existia antes. São esses os atos técnicos, e o conjunto deles é a técnica, ou seja, a “reforma que o homem impõe à natureza em vista da satisfação de suas necessidades”. A técnica é, pois, a “reação enérgica contra a natureza ou circunstância”.
A vida é imprevista, e antes de nascer, nada nos é perguntado sobre ela. Em que circunstâncias vamos viver não é sabido, e encontramo-nos tendo que nadar numa circunstância, inexoravelmente indeterminada. “Viver é como uma situação que tenha de ser enfrentada, num mundo indeterminado”. É um problema que temos que resolver, e cuja solução não se pode transferir a nenhum outro ser. A técnica é o contrário da adaptação do sujeito ao meio; é a adaptação do meio ao sujeito.
O homem não busca apenas atender às necessidades básicas da sobrevivência. O conceito de “necessidade humana” engloba, desde o homem primitivo, tanto o objetivamente necessário quanto o supérfluo. Como diz Gasset, “o empenho do homem em viver, em estar no mundo, é inseparável de seu empenho em estar bem”. O bem-estar, e não o estar é a necessidade fundamental do homem.
Como conclusão desse raciocínio, o homem é um animal para o qual só o supérfluo é necessário. A técnica, nesse sentido, é a produção do supérfluo. O animal, diferente do homem, contenta-se em viver com o mínimo necessário para o simples existir. Já o homem quer muito mais que isso. Seu bem-estar é sua meta, e se trata de um ponto de chegada sempre móvel, ilimitadamente variável.
A questão importante é que a técnica não é por si só, boa ou ruim. Ela diminui, às vezes quase elimina o esforço imposto ao homem pela circunstância, mas se o homem fica isento de tarefas impostas pela natureza, surge a pergunta de o que ele vai fazer, com que vai ocupar sua vida. A superação da vida animal libera o homem para se dedicar a vários afazeres não biológicos, que não são impostos pela natureza. O homem mesmo inventa tais afazeres. Se o homem não cuida muito de aproveitar suas horas da melhor forma possível, sua vida será a estrangulação constante de si mesmo.
Como diz o escritor, “o mais trágico do homem é o mais glorioso, pois ele tem obrigação de escolher e, portanto, queira ou não, tem que levar a efeito sua liberdade”. O mundo ao redor do homem é uma intricada rede, tanto de facilidades como de dificuldades. A existência do homem não é um estar passivo. Ele tem de lutar constantemente contra as dificuldades que o entorno lhe oferece. Viktor Fankl resumiu bem o livre-arbítrio do homem cercado pelos limites do meio: “Entre o estímulo e a resposta, o homem tem a liberdade de escolha”.
Gasset afirma: “Precisamente porque o ser do homem não lhe é dado, mas é em princípio pura possibilidade imaginária, a espécie humana é de uma instabilidade e variabilidade não comparáveis às espécies animais”. E conclui que, em suma, “os homens são enormemente desiguais, contrariamente ao que afirmavam os igualitaristas”. Cada homem tem que fazer sua própria vida, já que esta não lhe é algo dado e pronto.
“Viver é descobrir os meios para realizar o programa que se é”, explica Gasset. Logo, o sentido e a causa da técnica estão fora dela, “no emprego que o homem dá às energias que lhe sobram, energias economizadas pela técnica”. A missão inicial da técnica seria esta então: dar liberdade ao homem para ele poder entregar-se a si mesmo. As preferências são subjetivas e cada um terá que escolher o que quer para si.
Comparando Esparta com Atenas, vemos que a primeira se concentrava mais no essencial, sendo austera e igualitária, enquanto a última cultivava a beleza do espírito e das formas. Roberto Campos resume que Esparta seria a civilização do necessário, enquanto Atenas a do supérfluo. O esforço militar disciplinado dos espartanos não deixou vestígios agradáveis e marcou bem menos o ocidente que sua rival mais frívola.
De fato, há uma tendência, possível através da técnica, em tornar fim o que antes era um simples meio. Se antes comer era quase um ato somente para a sobrevivência, hoje temos a arte da culinária. Se beber era para matar a sede, hoje temos vários enólogos discursando sobre os prazeres de um bom vinho. Se as roupas visavam à proteção do clima, hoje temos o mundo da moda.
O filósofo David Hume foi um dos que notou a importância do supérfluo para a sociedade: “Quando excessivo, o luxo é fonte de muitos males; mas ele é em geral preferível à preguiça e ao ócio, que naturalmente ocorrem na sua ausência, e que são mais perniciosos tanto para os indivíduos quanto para a massa”.
O homem sempre buscou mais que atender as mínimas necessidades da vida. A técnica consciente é seu grande aliado nessa trajetória. “Contudo”, lembra Gasset, “a vida humana não é só luta com a matéria, mas também luta do homem com sua alma”. Ter isso em mente é fundamental quando vemos o grande vazio que muitos homens sentem mesmo num mundo de técnica extremamente avançada. A redução do desconforto material, possível pelo progresso da técnica, é espetacular e algo desejável. Mas não é tudo na vida humana.
Texto presente em “Uma luz na escuridão”, minha coletânea de resenhas de 2008.
Inteligência americana pode ter colaborado com governo brasileiro em casos de censura no Brasil
Lula encontra brecha na catástrofe gaúcha e mira nas eleições de 2026
Barroso adota “política do pensamento” e reclama de liberdade de expressão na internet
Paulo Pimenta: O Salvador Apolítico das Enchentes no RS