Em artigo publicado hoje na Folha, Leandro Narloch apresenta uma “proposta de conciliação” entre Roger, o cantor do Ultraje a Rigor, e Marcelo Rubens Paiva, o escritor. Narloch tem mesmo esse espirito conciliatório, e sua personalidade parece contrária aos embates com mais faíscas. Trata-se de um ótimo resumo da posição que julgo mais adequada em relação aos sombrios anos 1960. Diz Narloch sobre o lado direito:
Roger poderia começar admitindo que sim, condena a morte de Rubens Paiva e os torturadores da ditadura militar. É fácil perceber o tamanho da injustiça. Imagine que você tem 11 anos e é feriado com sol no Rio de Janeiro. De repente chegam uns homens com metralhadoras e levam seu pai para a delegacia. Você nunca mais o vê. Cresce sem notícias, sem poder reclamar. Os homens que mataram seu pai mandam no país.
A tortura é execrável até mesmo em casos de guerrilha, que hoje também envolveria repressão do governo federal. Pessoas envolvidas em luta armada devem ser presas por porte de armas ou incitação à violência: não está na lei que podem ser torturadas ou mortas depois de capturadas.
Por fim, Roger poderia criticar a ditadura por erros econômicos similares ao do governo atual. A ditadura infestou o Brasil de estatais, adotou um protecionismo que fechou o Brasil para o mundo, descuidou das contas públicas e da inflação. Mas melhor deixar isso de lado: talvez Marcelo não goste de ver na ditadura semelhanças ao governo que ele defende.
Sim, ninguém precisa temer ser visto como comunista ou de esquerda por reconhecer os erros e abusos do regime militar. Ninguém deve fazer vista grossa às torturas comandadas por alguns desses militares. Por fim, não há muito que celebrar do modelo econômico desse período, extremamente nacionalista e estatizante, especialmente na era Geisel, bem nos moldes atuais.
Em defesa de Roger e bancando o advogado do diabo, diria que há um viés tão forte contra os militares, pintando os comunistas da época como heróis e ignorando completamente o contexto da Guerra Fria, que qualquer defensor da verdade imparcial acaba tendo de subir o tom e exagerar para ser ouvido e enfrentar uma máquina de propaganda enganosa do outro lado.
Do lado de Rubens Paiva, ou o esquerdo, eis o ponto de Narloch:
Marcelo Rubens Paiva também teria muito a reconhecer –mas nada que já não seja óbvio e estabelecido. O principal é que a ideologia que seu pai defendia era um equívoco tremendo. O jornalista poderia admitir ser ingenuidade acreditar que um governo comunista no Brasil não resultaria em fome, desabastecimento e repressão. Pois foi o caso de todas (sim, todas) as experiências socialistas do século 20.
Ou que, em caso de um governo comunista no Brasil, veríamos boa parte da população brasileira fugir para os países vizinhos, como aconteceu da Coreia do Norte para a Coreia do Sul, da China para Hong Kong, da Alemanha Oriental para a Ocidental, de Cuba para os EUA, do Laos e do Camboja para a Tailândia, de Moçambique para a África do Sul (em pleno apartheid).
Com essa atitude, Marcelo Rubens Paiva participaria de um grupo de nobres pessoas que tiveram generosidade para admitir equívocos do passado sem deixar de reprovar a ditadura, como fizeram Fernando Gabeira, Ferreira Gullar e tantos outros. Dar graças a Deus que o Brasil escapou do comunismo não implica defender torturadores e assassinos. Do mesmo modo, condenar a morte de Rubens Paiva e as torturas da ditadura não fará de Roger um esquerdista.
Exatamente. Reconhecer que houve injustiças naquela época não é o mesmo que endossar a visão de mundo dos comunistas. Logo, o escritor tem todo direito de reclamar dos militares, de cobrar explicações, sem que precise enaltecer aquilo que seu pai defendia. Muitos se encantaram com o comunismo por romantismo ou ignorância.
Reconhecer que aquela turma sonhou o sonho errado, e que se tivesse logrado êxito seria o pesadelo da nação, é apenas ser honesto e constatar o óbvio. Mas, bancando o advogado de Rubens Paiva agora, pode-se dizer que fazer isso é difícil, pois exige a coragem de sucatear uma vida de defesas equivocadas, no caso de seu próprio pai que lhe foi tirado à força pelos militares. As emoções envolvidas dificultam a clareza da razão mais imparcial.
Narloch conclui que devemos tocar a bola pra frente, pois já faz algumas décadas que estamos discutindo esse assunto. Até concordo, mas é preciso lembrar do alerta de George Santayana: aqueles que ignoram o passado estão condenados a repeti-lo. O que aconteceu naquela época precisa servir como lição, para evitarmos destino semelhante.
O desafio é justamente jogar uma lupa com mais imparcialidade, para condenarmos os excessos e abusos dos militares sem cair na armadilha de enaltecer o que desejavam os comunistas, que não tinha absolutamente nada de democrático.
Rodrigo Constantino