Escrevi um texto tentando mostrar o outro lado da história, o alerta que alguns fizeram de que a decisão do STF de afastar Cunha era arbitrária, inconstitucional e abria perigoso precedente, instaurando talvez uma “ditadura da toga”. Terminei concluindo que não tinha forte opinião formada sobre o caso, o que incomodou uma leitura, que disse que, como formador de opinião, preciso ter uma forte opinião. Discordo. É legítimo, ainda mais em casos tão complexos, ter uma opinião “em cima do muro”, ou seja, demonstrar mais dúvidas do que certezas.
Por isso reproduzo abaixo o comentário de Taiguara Fernandes de Souza, que tem feito ótimas análises jurídicas do país. Ele argumenta que a decisão foi acertada, e que há respaldo legal sim. Fica para nossa reflexão:
> EDUARDO CUNHA AFASTADO: IMPEACHMENT EM PERIGO? <<
Li a decisão do Ministro Teori Zavascki inteira e, a meu ver, a decisão está correta.
Antes de tudo, o julgamento que muita gente fez sobre se tratar de uma decisão política ou uma conspiração de Teori Zavascki para anular o impeachment é muito ansioso e pouco jurídico. Uma decisão de 73 páginas não é algo feito à toa e que possa, simplesmente, ser desconsiderado.
A decisão traz fartas provas – delações, documentos obtidos em busca e apreensão, e-mails e mensagens de celular apreendidas, etc – que confirmam largamente a existência de INDÍCIOS de obstrução de justiça – isto é, Cunha estava atuando, pelo menos segundo os indícios, para prejudicar o processo contra ele. Não tenho como enumerar todos os motivos; quem quiser sabê-los, deverá ler a petição. São muitas e muitas páginas com transcrições das delações, mensagens de texto, e-mails, depoimentos, etc.
Foi este o mesmo motivo que levou o Supremo a prender o Senador Delcídio Amaral (outra decisão inédita) e a suspender a posse de Lula como Ministro da Casa Civil (portanto, é algo que já vem na linha do que o STF está decidindo, não foi algo forjado para agora).
Teori explica que a decisão não é uma cassação de mandato, nem uma condenação. Muito jornal está falando por aí que Cunha foi cassado pelo Supremo: falso e este é um dos pontos que Zavascki frisa bem. A medida de afastamento é uma medida CAUTELAR, isto é, por cautela, cuidado, para evitar fatos que possam prejudicar os processos. “ela não tem o condão de destituir ou privar alguém definitivamente do exercício de um direito que ela se sustenta diante do princípio da presunção de inocência”, explica o Ministro (p. 12).
A medida cautelar deferida por Teori Zavascki tem amparo no Código de Processo Penal, art. 319, VI: “[se determinará] suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais”.
“Justo receio” é uma expressão aberta, mas significa que o juiz precisa ter uma suspeita razoável de que o crime está ocorrendo para determinar a medida. É por esse motivo que o Ministro Zavascki insere em torno de 50 páginas com transcrições das provas, demonstrando que o “justo receio” existe, permitindo a aplicação da medida de “suspensão de exercício de função pública”.
Teori explica que não se trata de cassação, porque isto cabe somente à Câmara dos Deputados, segundo a Constituição. Afirma o Ministro que esta é uma competência que “assiste exclusivamente às Casas Congressuais, não podendo ser relativizada” (p. 14). É por isto mesmo que, conforme diz em seguida, o que se está fazendo com esta decisão não é uma cassação, mas uma SUSPENSÃO da função pública: Eduardo Cunha não perdeu o mandato, só não poderá exercer suas funções.A medida de suspensão da função pública existente no Código de Processo Penal pode ser aplicada a Eduardo Cunha porque ele “figura como réu perante o Supremo Tribunal Federal, em autos que agora, reautuados como ação penal” (p. 30). Trata-se do Inquérito nº 3983, no qual o Supremo já concluiu existirem indícios de crime praticado por Cunha. Ora, se é réu numa ação penal, é evidente que contra ele podem ser aplicadas as medidas cautelares do Código de Processo Penal. O Supremo não fugiu da competência neste ponto (até porque, como disse o Ministro, não há perda de mandato, nem condenação: há uma suspensão cautelar).
Teori Zavascki esclareceu também, contra toda a ladainha petista, que Eduardo Cunha, por já ser réu numa ação penal no Supremo, não estaria qualificado para assumir a Presidência da República no caso de Michel Temer – já Presidente, após o impeachment – precisar, por qualquer motivo, deixar o cargo. Eu concordo com ele neste ponto: se o Presidente da República, caso tenha uma queixa-crime recebida contra si no STF, é afastado do cargo, é óbvio que alguém que JÁ POSSUA uma denúncia contra si recebida no Supremo ANTES de ser Presidente não pode chegar a sê-lo.
Enfim, não acredito que esta decisão seja errada. Está juridicamente correta, a meu ver, tem bons argumentos e é bem fundamentada. Não foi algo feito à toa. Percebe-se que foi uma decisão amadurecida.
Cunha teve papel imprescindível no impeachment. Se não fosse ele na condução do processo, não teria ido para a frente. Porém, isto não lhe dá “carta branca” para tentar se livrar do próprio processo. O que valeu para Lula e Dilma, no caso do Ministério da Casa Civil, vale também para ele.
Esta decisão também não afeta ou anula o processo de impeachment, como alguns estão afirmando – especialmente os petistas. Não acreditem nesta tese. A Procuradoria-Geral da República não colocou entre os motivos contra Cunha a aceitação do pedido de impeachment, nem o Ministro Teori mencionou isso. Os fatos se referem UNICAMENTE a supostas ações de Cunha para se livrar DO PRÓPRIO PROCESSO. Cunha recebeu o pedido de impeachment no pleno exercício de suas funções como Presidente da Câmara e isso já foi referendado pelo STF por duas vezes. Não há como voltar atrás neste ponto.
Na verdade, agora acabou o único argumento dos petistas: eles não vão mais poder falar “Fora Cunha”. Dilma Rousseff, no seu discurso de hoje, estava visivelmente abatida por ter de cantar esta ladainha pela última vez…
A decisão de Teori Zavascki pode ser consultada aqui: http://
politica.estadao.com.br/ blogs/fausto-macedo/ wp-content/uploads/sites/ 41/2016/05/AC-4070.pdf
Outro que adotou postura cautelosa diante de decisão tão polêmica foi o editorial da Gazeta do Povo:
A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de afastar, por unanimidade, Eduardo Cunha (PMDB-RJ) do mandato parlamentar e da presidência da Câmara dos Deputados foi descrita como histórica por juristas e políticos, embora tenha sido também classificada por alguns como um polêmico precedente.
[…]
A questão não é meramente formal, de cumprimento da letra da Constituição. É com relação a seu próprio espírito, de proteção ao mandato democraticamente conferido pelo povo. O precedente fragiliza a força dos mandatos, o que pode ser delicado sobretudo em momentos que surjam pretensões autoritárias.
[…]
É claro que todos os brasileiros de bem anseiam por ver Cunha desterrado da vida pública. Mas, ainda assim, como diz o ditado, é sábio dar o benefício da lei ao próprio demônio se se quer proteger a sociedade.
Em circunstâncias de crise aguda é natural que surjam problemas de tal intensidade que a ponderação exata da melhor solução requeira uma ampla discussão e muita lucidez. O mais importante é que essas reflexões contribuam para o fortalecimento do sistema democrático.
Perfeito! Aliás, faço o parêntese de que os editoriais da Gazeta têm sido realmente muito bons. E fica registrado, então, que não é trivial ter “forte opinião” automática, sem estudar mais a fundo, quando se trata de casos delicados e complexos. Vou além: diria que talvez esse seja um dos grandes problemas dos brasileiros. São palpiteiros demais, dão pitaco em tudo como se fossem experts, em vez de adotar postura um pouco mais humilde.
Estamos de olho no STF, claro. Temos receio dos precedentes abertos. Mas não vamos, por isso, fingir que há uma única forma de enxergar isso tudo, a mais maniqueísta e infantil de todas, de que 11 golpistas de toga resolveram simplesmente dar um golpe e rasgar a Constituição. O buraco é mais embaixo, como podemos ver.
Rodrigo Constantino
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