Em nome de um debate plural, devemos ouvir todos os lados sempre, certo? Bem, depende. Na verdade, às vezes essa pretensão de pluralidade serve apenas para mascarar um viés ideológico. Afinal, é uma tática manjada tentar dar equivalência a pontos de vista que certamente não disputam em pé de igualdade o pódio da verdade.
O que quer dizer, por exemplo, um discurso que diz algo mais ou menos assim: sou contra estupradores, terroristas e minha sogra? Não resta muita dúvida de quem é o verdadeiro alvo, não é mesmo? Raciocínio similar serve para logo identificar o que está sendo realmente atacado por quem se diz contra o comunismo, o fascismo e o capitalismo. Ora, ele quer atacar o capitalismo, está claro. Ou então “detesto Hitler, Stalin e Trump”: o presidente americano é o verdadeiro alvo, pois misturado como equivalente de dois tiranos assassinos.
A Folha de São Paulo tem um caderno de opinião que volta e meia traz um “debate”, com duas opiniões divergentes sobre um tema “polêmico”. Desarmamento ou não? Aborto ou não? Legalização das drogas ou não? A ideia é boa, democrática, saudável. Mas ela pode ser manipulada. Tanto pela escolha dos temas, como de quem será chamado para defender cada lado.
Há temas que simplesmente não são polêmicos. E a inclusão deles ali, naquele “debate”, serve apenas para dar credibilidade para bizarrices defendidas por um lado – aquele tosco e indefensável. Será que a Folha promoveria um “debate” com ares de seriedade para definir se a Terra é plana ou arredondada? Pois é. Mas hoje o jornal julgou adequado “debater” se ainda existe democracia na Venezuela. A Terra é plana!
Para defender o óbvio – que a democracia morreu faz tempo no país socialista – foi convidada Colette Capriles (sem parentesco com o líder da oposição), que apresentou fatos e argumentos que comprovam a morte da democracia em seu país. O eleitor é refém da máquina estatal, que intimida, compra, cala, persegue:
O “carnê da pátria”, cartão que gere esses benefícios, serve como registro de eleitor.
O outro extremo do aparato é composto por milícias e grupos paramilitares chamados “coletivos”, que ajudam o eleitor a “decidir” em quem votar e obstruem violentamente a atividade dos observadores da oposição.
O círculo de dependência e coerção é o grande motor da máquina, junto com os aparelhos auxiliares: o Conselho Nacional Eleitoral e o Tribunal Supremo de Justiça, cúmplices obedientes da política eleitoral do governo.
Mas eis que a Folha achou correto, para preservar os ares de “diversidade”, convidar Breno Altman, conhecido petista e sem qualquer credibilidade, que ninguém sério leva a sério, para defender o “contraditório”. Altman não só defendeu o indefensável, de forma completamente cínica e cafajeste, dando a entender que há “excesso de democracia” na Venezuela, como aproveitou para concluir alfinetando o governo Temer, este sim, um exemplo de ditadura:
Mesmo detendo o monopólio da força militar e o respaldo do Poder Judiciário, o governo Maduro mantém o compromisso de Chávez, preservando as instituições e os direitos através dos quais o povo, de forma direta ou delegada, faz valer sua vontade soberana.
Esse mesmo compromisso não apresentam os democratas de ocasião, contumazes em denunciar fraudes, sem apresentar provas, apenas interesseiras convicções, toda vez que as urnas decidem contra suas aspirações.
Entendeu? Maduro tem compromisso com a democracia, mesmo tendo poder para exercer uma tirania; já Temer e os “democratas de ocasião” defendem o “golpe” contra Dilma, pois as urnas decidiram contra suas aspirações. E a Folha publica um troço desses!
Se tudo deve gerar um “debate” com os dois lados, que tal o jornal convidar um nazista ferrenho para defender a “versão” de que o nazismo foi, no fundo, um regime democrático e pacífico, que não desrespeitou as instituições ou os direitos humanos? Que tal promover um “debate” e convidar alguém para sustentar que o Holocausto não existiu, como fez um professor maluco num caso verídico que virou filme, com Rachel Weisz? Pois é.
A mesma Folha, sempre em nome da “pluralidade” (que de forma insistente sempre pende para a esquerda), publicou hoje a coluna de Vladimir Safatle, ligado ao PSOL, aquele que diz que “não existem liberais verdadeiros no Brasil”. Safatle, vejam só!, até reconhece os “descaminhos” da revolução russa, que faz aniversário este mês de outubro; mas nem por isso, alerta, devemos jogar fora a revolução em si:
Se deuses apostam, por que os humanos também não guiariam suas ações por aquilo que, diante das condições atuais, só pode aparecer como uma aposta?
Mas aos atores políticos, pede-se prudência como virtude, dirão alguns. É verdade, pede-se prudência às vezes, mas nem sempre. Prudência sempre é simplesmente uma forma de servidão em relação ao presente.
Seria fácil lembrar agora que a Revolução Russa conheceu, muito rapidamente, inúmeros descaminhos. Não é o caso de esquecê-los. Mas aqueles que gostam de lembrá-los, o fazem com a esperança de retirar, de uma vez por todas, a noção de revolução do horizonte de nossas vidas.
A “aposta” comunista, com mais de cem milhões de cadáveres empilhados, não pode ser descartada, “só” porque tivemos alguns “descaminhos” por aí, em Cuba, na Coreia, na China, no Camboja, na Rússia, em Moçambique, na Venezuela etc. Isso acontece. Mas os deuses também apostam. Prudência, a marca do conservadorismo, é uma forma de servidão. Devemos ser ousados. Vamos apostar uma vez mais? Dessa vez vai…
É, como podemos ver, o único contraditório que a Folha não vai publicar é um texto como esse aqui, que expõe o ridículo da tática do jornal, que tenta bancar o “isentão” enquanto faz de tudo para dar espaço e credibilidade a defensores de tiranias assassinas, desde que de esquerda.
Rodrigo Constantino
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