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O Brasil, país de pensamento atrasado, tribalista, cai em inúmeros erros grosseiros de análise quando o tema é política. Mas um deles chama a atenção em particular: a confusão que tanta gente faz entre fama e sabedoria, entre talento artístico e visão política ou moral. Como autor de Esquerda Caviar, um livro que ataca a visão política de muitos desses ícones da arte, tentei deixar bem clara essa distinção logo no começo, para não gerar confusão. Destaquei em letras garrafais mesmo:

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NÃO DEVEMOS CONFUNDIR A ADMIRAÇÃO À OBRA DO ARTISTA COM SUA PRÓPRIA PESSOA OU SUAS IDEIAS POLÍTICAS.

Podemos respeitar ou até idolatrar certo músico, sem que isso signifique que suas ideias políticas devam ser também aceitas. Podemos ter ojeriza à conduta hipócrita de um famoso arquiteto, e ainda assim reconhecer sua importância em seu campo de trabalho. Podemos aplaudir de pé um excelente ator, e logo depois vomitar com seu discurso boboca.

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Ou alguém aprecia a Miss Universo por seu discurso sobre a paz mundial, e não por sua beleza? Quem foi que disse que atores e músicos são especialistas em economia e clima? Constatemos o óbvio: um canalha pode ser um excelente músico, pintor ou ator, assim como uma mulher com a cabeça oca pode ser linda.

Devemos separar uma coisa da outra. O que será atacado nesse livro é a visão ideológica dos artistas e intelectuais da esquerda caviar, assim como suas contradições entre discurso e prática. Não vem ao caso e nem é do meu interesse criticar suas obras artísticas ou científicas. Como disse Thomas Sowell em Intellectuals and Society:

O passo em falso fatal de tais intelectuais é assumir que a capacidade superior dentro de um campo particular pode ser generalizada como sabedoria ou moralidade superiores sobre tudo.

Essa passagem veio à mente ao ler a excelente coluna de Carlos Andreazza no GLOBO hoje, tomando como pano de fundo a presença de Chico Buarque na sessão que votou o impeachment de Dilma. Andreazza argumenta justamente que é preciso separar o artista do indivíduo com palpites políticos, e diz:

É possível gostar — ou não — da obra de Chico Buarque apesar desse flerte com a censura e independentemente de seu apoio incondicional à ditadura de Fidel Castro. A incapacidade de fazer tal distinção de campos é um dos nódulos da doença brasileira.

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Nada de errado há, pois, em que um artista, em sua condição individual (a que a todos iguala), tome partido e — oh! — erre. Convém que atentemos a isso — que humanizemos o mito — no momento em que tanto se fala sobre como cada um entrará para a história à luz do impeachment de Dilma Rousseff.

Autoritário, contudo, é que a posição política de um artista, porque artista, imponha-se como superior à dos que não concordam com ele. Fama não crava certeza. Talento não ergue pensador. Voz não esculpe compromisso com a liberdade — aí está Roberto Carlos a nos lembrar. E olhos verdes não nos fazem enxergar melhor.

Andreazza questiona ainda se a dúvida não seria melhor do que tantas certezas na arte, e faz uma comparação interessante entre o “argumento de autoridade” desses artistas e o coronelismo nordestino. Lembra, ainda, que o governo petista se serviu desses artistas por vários anos, dando-lhes em troca o ar de engajados – e, acrescento, muitos recursos e patrocínios.

Reinaldo Azevedo, em texto em que fala dos humoristas brasileiros, faz a mesma distinção entre o lado artístico e a visão política, criticando a postura do “isentão” Marcelo Adnet por este não se dar conta de que foi Chico Buarque quem misturou as coisas em primeiro lugar:

Na entrevista à VEJA, Adnet emprega duas vezes a palavra “petralha” em sentido crítico — com a palavra. A primeira: “É um chamando o outro de petralha, coxinha, Rouanet”. A segunda: “Três anos atrás, Chico Buarque era um grande compositor brasileiro. Hoje é um petralha. A opinião política do Chico não me interessa. Não é por causa disso que ele deixará de ser um músico maravilhoso”.

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E não é por causa de uma coisa imbecil como essa que Adnet deixará de ser um humorista bastante talentoso. Estamos diante de uma daqueles casos em que é melhor deixar a política a sério de lado. Que ele cuide do assunto nas suas paródias.

Vamos ver. Eu criei a palavra. E jamais chamei o “compositor Chico Buarque” de “petralha”. Aliás, nem eu nem ninguém. O Chico petralha é aquele que desqualifica milhões de pessoas que vão às ruas em favor do impeachment, tachando-as de golpistas. O Chico petralha é o que participou da campanha eleitoral de 2014 e acusou os governos tucanos de “falar fino” com os Estados Unidos. O Chico petralha é aquele que acusa autoritarismo de seus adversários no Brasil, mas endossa as atrocidades praticadas pelas ditaduras bolivarianas.

Eu gostaria que Adnet dissesse quando foi que a obra do compositor Chico Buarque foi destratada. Até a sua péssima literatura ganhou a aura de obra genial em razão da qualidade que lhe reconhecem na música, ora bolas! E olhem que não é difícil demonstrar que nada entende de prosa. Abra qualquer um de seus livros, ao léu, e a página encontrada trará uma batatada em que o subjetivismo exacerbado da tal “prosa poética” esconde a falta de técnica. Mas nem me perco nisso agora.

Adnet mistura as bolas quando faz a defesa daquilo que não foi atacado. Se o cidadão Chico Buarque resolveu comprar uma briga política, é razoável que tenha uma resposta igualmente política. Se vai ao Senado no julgamento do impeachment na esperança de que a sua influência como artista interfira na opinião dos senadores — ou não era nessa condição que estava lá? —, é Chico quem mistura seus trinados com um debate que está fora do terreno estético, não os seus críticos.

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Quando milhões de brasileiros decentes execram Chico Buarque, o que está sendo execrado é o indivíduo, sua visão política, moral (ou imoral), sua defesa do indefensável, sua hipocrisia. É perfeitamente possível que alguém considere Chico, o indivíduo, um perfeito imbecil ou um grande canalha, e ainda assim continue apreciando suas músicas. No Brasil tribal, porém, as duas coisas parecem indissociáveis. E o talento do artista parece lhe conferir uma aura de sabedoria política e de moralidade superior, o que prova apenas nosso atraso mesmo.

Rodrigo Constantino