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A autodeterminação do indivíduo e o seu direito de viver sem ideologias
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Por Sergio Renato de Mello, publicado pelo Instituto Liberal

Diante da realidade sombria e enganadora de que essa modernidade ideológica é um verdadeiro ser, tem uma existência por si mesma, não cai no vazio a afirmação de que existe uma dialética entre chiqueiros e porcos. Nas sempre precisas palavras de Theodore Dalrymple, “Logo, os chiqueiros fazem os porcos ou os porcos fazem os chiqueiros? Suspeito que exista, como meu pai costumava dizer, uma relação dialética.”1 Dalrymple estava se referindo ao lugar destrutivo que ficaram as habitações públicas, cheias de pessoas em círculo vicioso de miséria moral, vivendo na sarjeta sem conseguir dela se livrar.

Transferindo essa sarjeta para nossa época moral, para uma realidade quase autoritária de impor modos de vivência particulares para todos, podemos dizer que ela está na modernidade e suas vicissitudes ideológicas. O indivíduo sabe que está sendo vitimado por decisões que não são as dele, mas, num vício de miséria moral, está num lugar do qual não consegue ou não tem forças para dele sair.

Nesse mundo moderno em que temos muitas escolhas a fazer, sobre como viver melhor, sobre o que pensar, ao menos há uma coisa comum a todos: podemos afirmar que viver sem sonhos é uma utopia. O ideal de felicidade e sua busca sempre acompanharam o ser humano, desde os tempos mais longínquos. Porém, ideologias que fazem do próprio destinatário dessa tal felicidade o objeto ideológico são aberrações humanas e resultam em uma abolição do próprio homem. Esse homem é sujeito de direitos e não um objeto, daí porque ele não pode ser ideologizado ou enganado sobre como viver fantasiosamente. O ser humano não é um arquétipo partidário ou ideológico, daí o seu direito de não ser manipulado por legisladores falsos ou tiranos.

Ao contrário do que pensam os ideólogos e manipuladores da opinião pública, tentáculos da revolução gramsciana, defensores de uma “moral superior”, o ser humano não é um objeto, mas um sujeito de direitos humanos e com a sua dignidade.

Naturalmente, é da vontade de Deus que o homem se assemelhe a ele, em imagem e semelhança, em ideal de felicidade e em vida abundante, mesmo que a perfeição somente tenha vindo ao mundo em pessoa com Jesus Cristo. Desde o homem primitivo, filósofos sempre tiveram e ainda têm (alguns não!) a intenção de buscar, dizendo de grosso modo, o bem e o bom para todo mundo. Luis Felipe Pondé nos brindou com seu Guia Politicamente Incorreto de Filosofia, pela Editora Leya, onde se procura ajuda para entender um pouco das mazelas do mundo e do ser humano sem querer mudar esse entorno, ou seja, sem querer transferir nossos ideais metamorfósicos para além de nós mesmos, para nosso “Eu”. Afinal, entendi que não é o mundo que tem que ser mudado, somos nós mesmos, daí a incorreção política propositada do referido guia.

A evolução científica nos brindou com a sua chegada. Num espaço intermediário entre o nada científico e uma era de inverdades e manipulações midiáticas e políticas de hoje, agora podemos falar em pós-verdade, desfiguração do objeto de conhecimento científico, em ressentimento e do sentimentalismo como praga tóxica. Hoje, a ciência é subjetivizada e o que prevalece é a vontade do ser humano pura e simplesmente. O que importa é apenas uma vontade ideóloga de querer me autotransformar e transferir essa metamorfose para os outros também, como se todos tivessem o mesmo desejo que o meu, universalizando-a. Ao contrário do que isso possa parecer, não se trata de querer bem. Muito pelo contrário, a vontade individual deve prevalecer sobre o intento coletivo, de coletivizar ideais e desejos humanos, já que o indivíduo, em si mesmo considerado, é o senhor dos senhores quando se fala em direitos, e não o grupo de que faz parte.

Partindo desse princípio, de que o indivíduo merece ser valorizado pelo que é e não pelo grupo a que pertence, fica fácil de se tomar esse pressuposto como um preconceito. Theodore Dalrymple faz muito bem essa separação entre pensamento preconcebido e preconceito. Por outro lado, essas linhas muito bem poderiam parecer egoísmo. Ayn Rand, dessa forma, poderia parecer preconceituosa e, então, egoísta, já que eleva a defesa do indivíduo ao patamar de quase absoluto. Nesse particular, temos mesmo é que ser egoístas, sob pena de afundarmos num buraco negro onde só o Estado fica com a tábua de salvação…

O grande perigo e risco de morte total do indivíduo e de autoritarismo é o Estado tomar partido nesse desejo, principalmente legislando e julgando de forma coletiva. Ideologias fazem parte de um desejo da ONU e do globalismo, onde um centro de poder que se quer sabe do que acontece na esquina de seu prédio decide para o mundo inteiro. São os legisladores desse mundo tenebroso. Os verdadeiros legisladores, a bem da verdade.

A minha e a sua vontade de não sermos tomados por ideologias devem prevalecer, não a dos legisladores centralizados. Quanto menos centralização melhor. Quando mais representatividade local melhor. Quanto mais nossos governantes souberem de nossos anseios é o ideal. O contrário disso é uma sub-representação ou ausência total dela, quedando meu voto a significar absolutamente nada, em face dos anseios coletivistas acientíficos.

No direito brasileiro, nossa Constituição Federal (art. 4º, inciso III) prevê que um dos anseios da República Federativa do Brasil, nas suas relações com outros povos, é a autodeterminação. Ou seja, cada povo ou nação tem o direito de viver com bem entender, respeitadas as devidas previsões normativas relativas a direitos humanos universais e a dignidade da pessoa humana (art. 4º, inciso II). Ora, se nas relações internacionais o Brasil tem como princípio a autodeterminação dos povos, nada mais lógico do que entender que tal diretriz também está disposta na ordem interna. Não seria justo e jurídico querer a liberdade apenas para os outros, sem que o mesmo desejo exista para nós mesmos. Ao menos a lei brasileira não tem esse feitio, essa tirania.

Por um conhecimento meramente raso ou superficial da realidade, sociológico, partindo do princípio de que todos são iguais e querem a mesma coisa, o que os  ideólogos de uma verdade superior querem é transmutar a natureza humana, desfigurando o ser humano em seus atributos morais e até mesmo físicos, pela mera vontade coletivizada. A consequência é um desastre: uma certa auto tirania e uma abolição do humano. Provocada pelos homens sem peito (Lewis), escravos do espírito, pelo desprezo dos valores do coração e da alma humana.

Lutamos pela democracia e ela, finalmente, depois de muitas e muitas mortes em todo o mundo, chegou. Ainda que ela, a democracia, ainda não seja uma perfeição (e nunca será, já que o ser humano não é perfeito, ao contrário do que dizem os ideólogos), não me parece que ela seja o pior de todos os regimes de governo. O Brasil é democrático. A democracia é garantir direitos de todos, da maioria, sem desprezar os direitos das minorias. A luta pelas liberdades públicas e do indivíduo, no Estado de Direito, começa aqui.

O indivíduo precisa ter consciência de seus direitos de crença e de manifestação, crença em ideologias partidárias ou não. Isso deve ser sua opção. Mas, para além disso, de não ser manipulado por essas intenções ou projeções de felicidades que de científicas não têm absolutamente nada! São irreais e ilusórias, fadadas, portanto, ao fracasso total, em abolição do próprio homem, com bem isso Lewis, já citado. A mídia coopera, e muito, nesse jogo de poder e de luta de classes sorrateiramente instigado por pseudointelectuais, por partidos políticos e por homens inescrupulosos, sendo um braço extremamente forte e essencial nessa manipulação.

Chesterton explica muito bem o lado humano e natural do homem na seguinte passagem, atentando-se para o itálico não original: “Mas comecei esta história em uma caverna, como a caverna das especulações de Platão, por ser uma espécie de modelo do erro de introduções e prefácios tão somente evolucionistas. De nada vale começar dizendo que tudo era devagar e suave a uma mera questão de desenvolvimento e grau. Pois no que se tem de concretamente, como os desenhos, não há vestígio algum de tal desenvolvimento ou grau. Os macacos não começaram os desenhos e os homens os terminaram; Pithecanthropus não desenhou mal uma rena e o Homem Sapiens a desenhou bem. Os animais mais desenvolvidos não desenharam retratos cada vez melhores; o cachorro não pintou melhor em seu melhor período do que pintou com os antigos modos de quando era um chacal… Tudo o que podemos dizer dessa noção de reproduzir coisas em sombras ou com forma representativa é que isso não existe em parte alguma a não ser no homem; e que não podemos sequer falar a respeito disso sem tratar o homem como algo de separado da natureza… Não é natural ver o homem como um produto natural…”. Mas, antes dessa última afirmação, deixou escrito que “o homem é a medida de todas as coisas; o homem é a imagem de Deus.” (em O homem eterno, São Paulo: Ecclesiae, 2013, págs. 39, 40 e 41).

1A vida na sarjeta: o círculo vicioso da miséria moral. Tradução Márcia Xavier de Brito. 1ª ed. São Paulo: É Realizações, 2014, p. 174.

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