Publiquei um texto neste domingo sobre a controvérsia gerada nas redes sociais entre liberais com viés mais libertário e aqueles com viés mais conservador, os primeiros dando mais importância à economia e os últimos à cultura na luta pela liberdade. Acho que ambas precisam andar juntas, de mãos dadas, mas se tiver que escolher a prioridade, ficaria ao lado dos liberais mais conservadores, apesar de ser um economista.
Alguns amigos e leitores, porém, chamam a atenção para o real alvo desses ataques dos libertários: alguns conservadores ou mesmo reacionários que, ao definirem a “guerra cultural” como a única coisa relevante, ignoram completamente os aspectos da liberdade econômica, como se irrelevantes fossem. Para defender Trump, por exemplo, fazem vista grossa ao seu protecionismo mercantilista. Ou para defender Bolsonaro, passam até a atacar privatizações. Raphael Barcelos comentou:
Eu não sou o mais letrado dos liberais. Confesso. Mas vem acontecendo um fenômeno muito importante nas redes pelos neoconservadores (o que são na verdade, de acordo com Hayek): eles preferem deixar a economia de lado e se empenhar numa revolução cultural que menos de liberdade eu vejo e sim mais de moralismo. Eu concordo com o moralismo deles, mas aí achar que esse valor deva ser supremo, ou compartilhado por todos me torna um “não-liberal”. Hayek concorda com isso, estou certo?! Me corrija se estiver errado. Essa revolução cultural, empenhada muito por Olavo de Carvalho, ao qual admiro, porém discordo. O mesmo, por exemplo, há poucos dias atrás lançou mão de que privatização não funciona no Brasil em NADA, grifo dele, sem a revolução cultural. Não dá pra engolir essa. […] Não dá para continuar numa lógica de Estado grande para fazer valer uma revolução cultural, isso soa Mao Tse-tung, ou Mussolini.
Quem acompanha meu blog sabe: já critiquei Trump algumas vezes por sua visão mercantilista do comércio internacional. E depois de avaliar os prós e contras, as vantagens e defeitos, concluí que ele tem chances de fazer algo bom para o avanço da liberdade, nem que seja por impor derrotas aos “progressistas”. Mas estou de acordo que alguns mais empolgados tentam fazer de tudo algo positivo, de qualquer limão uma limonada, pois Trump precisa ser “o cara”, então até as baboseiras que diz sobre economia precisam se transformar em algo correto.
Também vemos o mesmo fenômeno no Brasil, com alguém ainda mais afastado do liberalismo, que é Jair Bolsonaro. Seus ataques às privatizações de FHC (realizadas por necessidade, não por convicção ideológica), sua postura contra a privatização da Petrobras, sua obsessão ridícula pelo nióbio, que, segundo ele, deveria ser explorado pelo estado, são sinais de que o deputado ainda segue distante demais do liberalismo, e isso deve ser constatado de forma aberta.
Alegar que as privatizações sem a mudança das estruturas não servem para NADA é claramente um absurdo. Se a ideia é dizer que elas são necessárias, mas não suficientes, aí tudo bem. Concordo. Basta ver como o setor de telecom continuou dominado pelo estado. Sergio Lazzarini, em Capitalismo de Laços, mostra bem como o jogo continuou sendo jogado pelos mesmos grupos, com cartas marcadas, em conluio com o governo. Privatizar é crucial, mas não é tudo.
O caso de FHC é um bom exemplo. Muitos liberais, ao focarem apenas na economia, celebraram as privatizações e o Plano Real, mas ignoraram que o estado seguiu avançando – e muito – em outros aspectos de nossas vidas. José Maria e Silva, jornalista de Goiás, resumiu com perfeição a coisa: “FHC, com o Plano Real, tirou o Estado da economia, mas colocou toda a sociedade dentro do Estado”. Na verdade, nem o tirou da economia, pois depois ele voltou pela porta dos fundos. Mas em temas morais e culturais, os “progressistas” do PSDB usaram o estado para se intrometer em tudo, com efeitos terríveis.
É esse aspecto que precisa ser lembrado e que tem ligação com a “guerra cultural” de que os liberais mais conservadores falam. O liberalismo econômico – que é uma parte do liberalismo – é fundamental, mas não é tudo. E mais: não se sustenta num vácuo de valores morais. A narrativa em prol do capitalismo, dos empreendedores, da liberdade individual, é esta que deve ser alimentada. Os argumentos lógicos convencem pela razão, mas há um limite para isso: é necessário seduzir pelas emoções também.
E basta pensar nas próprias privatizações para deixar isso claro. Quem pode negar o sucesso delas? Mas não temos ainda um monte de gente condenando as privatizações, repetindo que a Petrobras é intocável pois é “estratégica”, colocando-se contrária à venda do Banco do Brasil? Narrativa, senhores, narrativa. Um filme como o que será lançado em breve sobre o Plano Real, com um Gustavo Franco no papel de herói, vale mais do que inúmeros artigos técnicos com dados e teorias sobre a inflação.
Num churrasco ontem, um sujeito que acabou de se mudar para Miami disse algo assim: “A impressão que fica mais marcante dos Estados Unidos em relação ao Brasil é como o empreendedor é visto. Aqui ele é um herói; no Brasil, um vilão”. Se isso não tem ligação com a “guerra cultural”, com a “batalha das narrativas”, com filmes e novelas, não sei com o que teria.
FHC teria dito para Arminio Fraga que o brasileiro não gosta do capitalismo, quer sempre mais estado cuidando de tudo. Isso é efeito de quê, senão da cultura? E como os liberais pretendem mudar isso? Só focando na economia, mostrando racionalmente como as privatizações melhoram a vida de todos, argumentando que os sindicatos prejudicam os trabalhadores? Tudo isso é fundamental, desnecessário dizer. Mas não basta! Não chega aos milhões de brasileiros mais leigos, que precisam absorver a mensagem por outra via, mais emotiva. Eis onde entra a cultura, especialmente a popular.
Reparem que nem estou falando da alta cultura aqui, e da sua importância para a humanidade, para preservar a ordem – espiritual e social. Roger Scruton explica por que a cultura importa, e muito. Mas o foco desse texto tem sido mais trivial: mostrar que os liberais devem priorizar o lado cultural do liberalismo, ou seja, como transmitir melhor nossas mensagens, que não podem se resumir ao “economicismo”, pois devemos atrair as pessoas pela mente e também pelo coração.
Alguém acha mesmo que é a economia que define tudo, que o eleitor só se preocupa com o bolso, especialmente os mais pobres? Então por que a esquerda fala tão pouco de economia? Por que seduz tantos eleitores com narrativas coletivistas, com ideologia de identidade, com a “marcha das minorias oprimidas” e a “revolução das vítimas”? Como negar o poder do movimento feminista hoje, ou do movimento LGBT? Como fingir que o movimento racial não é poderoso? E por acaso isso tem alguma ligação com a economia?
Um desses libertários escreveu numa rede de debates em que participo: “Em qualquer lugar do mundo o pessoal mais pobre (e não nos esqueçamos que a maioria dos brasileiros é pobre) está interessado é no ganha-pão, na batalha e sobrevivência do dia-a-dia. Em outras palavras, ele está interessado mesmo é na economia, embora não compreenda, e não seja capaz de discutir doutrinas econômicas”.
Em parte, mas longe de ser tudo. Essa visão é elitista e até preconceituosa. Os pobres também querem saber de valores morais. Quando escrevi sobre a esquerda caviar usando o pedreiro Amarildo como mascote para atacar a polícia, o elogio mais empolgado veio da recepcionista do prédio onde morava. Ela não queria saber só do aumento do salário no final do mês, mas de coisas mais elevadas, como o certo e o errado. Outro exemplo: vários pais estão indignados com a depravação moral nas favelas, e não sabem o que fazer para tirar suas filhas dos bailes funks. Nem só de pão vive o homem.
Em suma, a economia continua sendo essencial para os liberais, mas não pode ser tudo. Investir na narrativa, na cultura popular, na “imaginação moral”, como dizia o Whig Edmund Burke, isso é ainda mais importante. Os “pais fundadores” americanos não mobilizaram a nação falando em crescimento do PIB, mas sim em liberdade. A escravidão não foi abolida com argumentos econômicos, mas sim com a narrativa moral dos quacres. Quem não entendeu isso, entendeu muito pouco do ser humano.
Rodrigo Constantino