Terminei finalmente a segunda temporada da série “Billions”, com os brilhantes atores Paul Giamatti e Damian Lewis. Como alguém que trabalhou anos no mercado financeiro, confesso que a trama teve um gosto especial, mexendo em certas memórias de forma nostálgica. Até porque o personagem de Lewis foi inspirado no legendário Steve Cohen, da S.A.C., firma que já visitei e que era um ícone do setor (antes de Cohen ser acusado de “insider information”).
Há, sem dúvida, algum viés ideológico antimercado na produção do Showtime, como no filme “Wall Street” do comunista Oliver Stone. A categoria como um todo é tratada de forma caricata, como se só pensasse em dinheiro, em vencer os concorrentes, custe o que custar. Ok, há um pouco disso no mercado financeiro mesmo. Tá bom, eu confesso: há muito disso.
É um ambiente muito competitivo, com jovens brilhantes, ambições desmedidas, e (ainda) predominantemente masculino: como esperar outra coisa senão “machos alfas” tentando se provar perante os demais o tempo todo? É quase como na política!
Só que em vez de poder, a forma de demonstrar vitória é ter mais retorno, mais bilhões sob gestão. Como o produto final é o próprio dinheiro, o retorno sobre o capital, então às vezes se perde um pouco do propósito mesmo, no vale-tudo da concorrência pelos recursos escassos dos clientes e a imagem de vencedor. Só importa o bottomline.
Mas claro que não é apenas isso. O mercado de capitais é fundamental para financiar projetos do setor real, produtivo. Os “traders” são cruciais para gerar mais liquidez e, eventualmente, eliminar distorções do mercado (algumas vezes atuam para ampliá-las, especialmente se o mecanismo de incentivos criado pelo governo for inadequado).
Toda essa introdução, porém, foge do essencial quando se trata de “Billions”. Sim, a narrativa se dá no ambiente do mercado financeiro. Mas poderia ser em outro setor. O que realmente importa ali é a natureza humana, atemporal. As paixões como a inveja, o ressentimento, a sede pelo poder, pelo reconhecimento do outro. Os temas das grandes obras de arte, que apenas bebem da conjuntura para falar da estrutura, daquilo que continua valendo desde que o homem é homem.
Até porque se é possível apontar para a ganância desenfreada do especulador, também dá perfeitamente para pintar o procurador-geral sob luzes não tão belas assim. Atenção para algum spoiler: se ele parece um idealista ultracorreto disposto a jamais se desviar um milímetro da lei, com o tempo vai ficando claro que não é bem isso, que não é nada disso. O homem também tem suas ambições pessoais, e como são grandes! Personagens reais também inspiraram o personagem, já que muitos saíram desse cargo diretamente para a política, em busca de privilégios e poder.
E aqui está, em minha opinião, a mensagem central da série, sua grande questão: até onde o sujeito está disposto a ir para conseguir aquilo que ele deseja, aquilo que ele acha que quer? Como alguém que já acumulou tantos bilhões pode colocar tudo em risco, tudo a perder, só para ganhar mais um pouco, ou, na verdade, para humilhar o adversário, para mostrar seu poder, sua força, desafiando a própria Justiça?
E como o sujeito que tem um excelente cargo, estima do público, reconhecimento e a consciência de lutar pelo bem-comum e o império das leis, pode também arriscar tudo, inclusive família e amizades, em nome da obsessão, para prender aquele inimigo, não outro qualquer, mas ele, o que mexe com seus instintos mais selvagens, e que “por acaso” é o patrão de sua esposa, num relacionamento intenso e particular?
Já escrevi sobre a ambição desmedida usando como exemplo Eike Batista, e na política serve para Lula também. Ambos chegaram ao topo em suas respectivas áreas, apenas para cair lá de cima, feito Ícaro, do alto de sua arrogância, sensação de invencibilidade, soberba. Essa queda, em retrospectiva, parece inevitável. Mas como não perceberam o perigo? Por que não souberam parar antes?
Essa parece ser a pergunta-chave, e que nos gera tanta perplexidade, em nós que somos “normais”, que temos nossas ambições, mas mais controladas, equilibradas, que não precisamos “abraçar o mundo” ou “conquistar tudo” para se provar. O poder é um veneno, uma droga. Depois de alguns bilhões, não são mais bilhões em jogo, e sim outra coisa, bem diferente. Pode ser algo nobre, como um ideal qualquer, um negócio que vá fazer a diferença no mundo, sendo a riqueza somente um subproduto disso. Ou pode ser só pelos bilhões extras, pelo que eles significam nessa “corrida dos ratos” em patamar mais exagerado.
Em jogo está uma espécie de “pacto mefistofélico” que alguns fazem com o diabo, numa estrada bastante escorregadia. Ao se abrir a porteira, o inferno é o limite. Ao se aceitar as “regras do jogo”, fazendo concessões aos seus princípios, o céu é o limite. O mesmo tema, em essência, de outra série maravilhosa: “Breaking Bad”. Essas alianças com o diabo nunca acabam bem. Mas não importa: quem tem o perfil para fazê-las, não terá muito controle para saber dizer “não”. Não são pessoas, digamos, razoáveis.
As séries de televisão são o que há de melhor hoje, se comparadas aos filmes de Hollywood ou às novelas. Essas têm seguido uma agenda ideológica, exagerando no proselitismo, tentando “educar” o público de acordo com a visão limitada dos autores, em vez de lidar com as angústias humanas, demasiadas humanas. Essas, como já disse, são atemporais, o que explica Shakespeare ser um sucesso até hoje, séculos depois, ou Sófocles, milênios depois.
Já as novelas “engajadas” que distorcem como eram os dias do passado ou que buscam glamourizar marginais, essas ficarão esquecidas no minuto seguinte. Sua pauta é política, ideológica, partidária, não pretende abordar as questões da alma humana. É por isso que tanta gente, em número cada vez maior, tem abandonado a TV aberta e procurado refúgio, vida inteligente, nas séries. São feitas para adultos, não para crianças que desejam uma narrativa infantil e maniqueísta do bonzinho contra o malvado.
Rodrigo Constantino
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