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Biografias não-autorizadas: quer preservar sua privacidade? Então mantenha-se no anonimato!

O debate sobre as biografias não-autorizadas está de volta, agora que o assunto será julgado pelo STF. É incrível como estamos atrasados no Brasil, e como ainda há gente que prega abertamente a censura, ainda que disfarçada sob o manto da “preservação da privacidade”. Aqui nos Estados Unidos você encontra inúmeras biografias não-autorizadas nas livrarias, a coisa mais normal do mundo. Mas vai ver o Brasil tem muito a ensinar aos americanos sobre liberdade, não é mesmo?

A única biografia que serve é a não-autorizada, pois a consentida não é biografia, e sim extensão do departamento de marketing pessoal. Mas a resistência ainda é grande, pois não somos um país com a cultura da liberdade. Já apresentei vários argumentos em defesa da liberdade de expressão, incluindo as biografias dos famosos e das figuras públicas. Podem ser vistos aqui, aqui ou aqui.

A turma da censura, porém, continua irredutível, achando que existe uma legitimidade em se vetar biografias, pois invadem o direito de privacidade do famoso. Hoje foi o ator Herson Capri, aquele que escreveu um patético texto em defesa da reeleição de Dilma (devidamente rebatido aqui), quem defendeu a censura, rebatendo um texto de Cacá Diegues (ele mesmo um esquerdista, mas defensor da liberdade das biografias):

Se a liberdade de ir e vir tem restrições, se a liberdade religiosa tem restrições, se as liberdades políticas têm as suas restrições e, enfim, se toda liberdade de alguém vai até onde ela atinge a liberdade do outro, por que então a liberdade de expressão não há de ter nenhuma regulação, nenhum limite? O que exatamente a torna absoluta e acima das outras? Tudo na vida e no mundo precisa de limites e a liberdade de expressão também necessita dos seus para ser realmente exercida na sua plenitude. Regular um direito não é censura. Censura à liberdade de expressão é outra coisa, é proibir artigos, é impedir a circulação de notícias, é vetar opiniões contrárias, é manipular os fatos, fechar jornais, atitudes perniciosas que nós já conhecemos muito bem da nossa história recente. Ninguém pode ser a favor da censura.

Chama a minha atenção o desprezo pelo outro direito em questão, um direito que se levou milênios para a sua conquista: o direito à privacidade. A vida privada é privada! Está restrita apenas ao cidadão e ao seu círculo íntimo, ou a quem ele autorizar. Estou falando de vida íntima, não dos crimes escondidos ou jogados para baixo do tapete. Esses têm que ser investigados, julgados e punidos. Mas se o direito à propriedade privada é sagrado, por que o direito ao uso intelectual ou comercial da própria vida privada não é? Se a propriedade privada pode ser protegida a ponto de se poder expulsar um invasor não autorizado até com violência, por que a privacidade é tratada com tanto desprezo como se fosse um direito secundário? Será uma questão financeira? Se for, quem tem o direito de ganhar com a sua vida privada é o próprio biografado, não um terceiro, seja ele um biógrafo ou uma empresa editora.

Ninguém costuma defender a censura de forma escancarada. Sempre tenta vendê-la sob o manto da hipocrisia, da defesa de outro direito qualquer. Não muda sua essência: é censura sim. Impedir artigos, vetar opiniões contrárias ou manipular fatos, como diz o ator, é exatamente o que essa lei faz, ao não permitir que biografias de pessoas públicas sejam escritas livremente. A analogia do ator com a propriedade privada é equivocada: ninguém está invadindo sua casa ou sua vida no caso da biografia, e sim relatando fatos públicos ou opiniões de outras pessoas sobre alguém famoso. O que Fulano sabe ou pensa sobre Cicrano não é propriedade de Cicrano, mas de Fulano, e é seu direito expor isso.

Ao afirmar que quem tem direito de ganhar com a sua vida privada é o próprio biografado, o ator deixa transparecer não só o lado materialista dos censores, como uma falha de interpretação: o famoso tem direito de ganhar com seu trabalho, mas não tem o direito de impedir o ganho dos outros com seu próprio trabalho sobre ele. Seria absurdo levar esse raciocínio ao extremo: jornalistas ganham a vida relatando fatos sobre pessoas conhecidas. Então só os políticos podem agora ganhar dinheiro com o que fazem? Só os artistas podem lucrar com seus shows, não mais aqueles que comentam sobre eles? Seria o fim das críticas, dos jornais, revistas, tudo!

“A vida privada é privada! Está restrita apenas ao cidadão e ao seu círculo íntimo, ou a quem ele autorizar”, diz o ator. Discordo. A vida privada deixa de ser privada, nesse sentido, quando a pessoa decide se tornar figura pública. Ela quer colher o bônus da fama, mas não quer seu ônus? Assim é fácil. A receita mais segura para quem quer preservar ao máximo sua privacidade é bem simples: manter-se no anonimato! Uma vez que escolha seguir a vida pública e viver da fama, perde-se o direito à privacidade, no sentido de ser do interesse do público aquilo que faz em sua vida privada. 

Claro que ninguém tem o direito de invadir sua privacidade para relatar segredos, obtidos de forma ilegal, muito menos de inventar coisas, o que será punido pelo rigor da lei: difamação e danos morais já existem para isso. Mas relatar o que for descoberto de forma legal, conversando com pessoas, pesquisando nos jornais os fatos públicos, isso é um direito básico do escritor, do jornalista. Tentar impedir esse trabalho é, não importa o eufemismo usado, censura.

PS: Dito isso, creio que o ator Herson Capri pode ficar tranquilo quanto à sua privacidade, pois não imagino que exista um interesse tão grande assim por parte de biógrafos para escrever as histórias secretas de sua vida. De minha parte, teria apenas alguma curiosidade em saber o que o motivou de verdade a defender com tanto afinco um governo corrupto e incompetente…

Rodrigo Constantino

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