O presidente Jair Bolsonaro transferiu, nesta quinta-feira, o Conselho Superior do Cinema (CSC) da estrutura do Ministério da Cidadania para a Casa Civil. A mudança foi formalizada ontem, em decreto assinado por ele, durante cerimônia em comemoração aos 200 dias de governo, em Brasília. Na ocasião, Bolsonaro aproveitou para manifestar também sua intenção de mudar a sede da Agência Nacional do Cinema (Ancine) do Rio para Brasília — informação antecipada pelo colunista Lauro Jardim , do GLOBO .
Ambos os movimentos mostram a intenção do governo de acompanhar mais de perto a política nacional do audiovisual.
— Agora há pouco, o Osmar Terra ( ministro da Cidadania ) e eu fomos para um canto e nos acertamos. Não posso admitir que, com dinheiro público, se façam filmes como o da Bruna Surfistinha. Não dá — afirmou, mencionando a produção que conta a vida de uma garota de programa, de 2011. — Não somos contra essa ou aquela opção, mas o ativismo não podemos permitir, em respeito às famílias.
A fala do presidente gerou reação, inclusive de conservadores e liberais. Entende-se a preocupação legítima de Bolsonaro com o uso de recursos públicos para bancar uma propaganda ideológica que visa a destruir os valores familiares. Quem estudou um pouco da Escola de Frankfurt sabe que isso não é simples paranoia de reacionário.
Mas é preciso ter calma nessa hora!
Em primeiro lugar, ainda que fale à sua base militante mais moralista, vale ressaltar que não é adequado um presidente determinar o que pode ou não ser produzido, mesmo contando com recursos públicos. Não é assim que funciona! Seu cargo não lhe dá uma carta branca para controlar conteúdo de cima para baixo, como se fosse um imperador, um monarca absolutista.
A guerra cultural existe, mas eis a grande diferença: liberais e conservadores entendem que é preciso vence-la por meio de debates, persuasão, produção de melhor conteúdo, denúncia daquilo que não presta; já os nacional-populistas com viés autoritário acreditam que o estado é o instrumento para a mudança, que é preciso impor uma guinada cultural em nome dos valores da civilização ocidental. Nonsense.
Em segundo lugar, o filme por ele mencionado sequer faz proselitismo da prostituição. Ao contrário: é uma história triste, a protagonista é digna de pena, sua vida é retratada sem glamour, parece mais uma tragédia. É muito mais provável uma menina se encantar com a vida da prostituição vendo “Pretty Woman”, com Julia Roberts e Richard Gere, do que vendo “Bruna Surfistinha”.
O ex-ministro da Cultura Sérgio Sá Leitão reagiu ao comentário do presidente numa série de tweets:
Declaração irresponsável e autoritária. A Constituição assegura a livre expressão da atividade intelectual e artística (artigo 5o). Trata-se de um ótimo filme, que não glamouriza nem estigmatiza a prostituição. E teve resultado expressivo: mais de 2 milhões de ingressos vendidos.O investimento em “Bruna Surfistinha” se justifica tanto do ponto-de-vista do desenvolvimento cultural e artístico quanto do ponto-de-vista do desenvolvimento econômico. Resultados relevantes em ambos os quesitos. Todos os países desenvolvidos do planeta investem em audiovisual!
1) Não cabe um tribunal moral para julgar o conteúdo de obras culturais (investidas pelo estado ou não). Isso significa dirigismo, controle e censura. A Constituição veda. 2) O investimento público em audiovisual acontece em todos os países desenvolvidos e civilizados do mundo. 3) O investimento público em cultura se justifica tanto do ponto-de-vista do desenvolvimento humano quanto do ponto-de-vista do desenvolvimento econômico. 4) Deve ser um investimento complementar ao privado, com rigor, transparência, avaliação de resultados e vinculação a metas. 5) Vital lembrar que boa parte dos recursos investidos pelo estado em audiovisual advém de uma CIDE (a Condecine) paga pelo próprio setor e pelo setor de telecomunicações, com destinação legalmente assegurada. 6) Investir em cultura e valorizar a arte é uma questão civilizatória.
Francisco Razzo também condenou o que foi dito por Bolsonaro: “De todas as falas do Bolsonaro ontem, esta me chamou bastante atenção: “não posso admitir que façam filmes como o da…”. E aí se refere ao filme sobre “Bruna Surfistinha”. É escandaloso ele se meter nisso. Mas o pior: o ataque a uma biografia como símbolo de decadência cultural.”
Já Dionisius Amendola lembrou o tipo de filme que era produzido durante o regime militar, para desespero dos reacionários que idealizam aquela época como uma de “moralismo”:
O deputado Paulo Eduardo Martins defendeu a visão mais libertária nesse assunto, pregando o fim da Ancine: “Sou contra a transferência da Ancine do Rio de Janeiro para Brasília. Prefiro que ela seja extinta. Defendo um cinema livre”.
Eis um ponto que liberais podem endossar: retirar totalmente o estado da equação. Mas se isso não ocorrer, então é preciso afastar as intenções “artísticas” do presidente, separando as coisas. Não é porque rola recurso público que o conteúdo será determinado pelo presidente. Isso é coisa de ditadura! É fazer proselitismo com sinal trocado, exatamente como pretendia o PT.
Quem não gosta de certo filme, vale lembrar, tem sempre a opção de simplesmente ignora-lo. Ainda é a melhor receita, aquela que preserva as liberdades individuais. Estado moralista impondo o que pode ou não ser produzido é algo inaceitável.
Rodrigo Constantino
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