“Quando alguém está honestamente 55% do tempo certo, isso é muito bom e não faz sentido discordar. Se alguém está 60% certo, isso é maravilhoso, sinal de boa sorte e essa pessoa deve agradecer a Deus. Mas o que deve ser inferido sobre estar 75% certo? Os sábios diriam que é algo suspeito. Bem, que tal 100% certo? Quem quer que diga que está 100% certo é um fanático, um criminoso e o pior tipo de crápula.” – Um velho judeu da Galícia
Essa passagem consta como epígrafe no livro Mente Cativa, de Czeslaw Milosz, polonês Prêmio Nobel de Literatura. Ele relata o ambiente tóxico das “democracias populares”, eufemismo para os regimes ditatoriais comunistas, onde o debate de ideias fora substituído pela doutrinação ideológica e a necessária aquiescência com a opinião oficial estabelecida. É a mentalidade predominante das seitas fechadas.
“Os homens se agarram a ilusões quando não há nada mais a se agarrar”, diz ele. O clima intelectual no Brasil de hoje nos remete a esse ambiente asfixiante. A crise social, econômica e moral causada pelos 14 anos de petismo abriu feridas quase mortais em nossa fé na democracia. O desespero leva à defesa de soluções drásticas, revolucionárias, aventureiras. Comunistas e fascistas disputam as alternativas, com os liberais espremidos no meio.
A polarização é total, alimentada pelas redes sociais nesse clima caótico. Os grupos se organizam e exigem lealdade plena, caso contrário o sujeito se torna automaticamente um inimigo mortal. Ou está comigo, ou está contra mim: o lema tribal. Numa guerra pela vida ou morte, tal postura pode até fazer sentido. Eis, então, outra característica atual: tudo é visto como uma guerra mortal, bem definida. Fez algum elogio ao governo Temer por conta de uma reforma boa? Só pode ser um comunista do Foro de São Paulo!
A narrativa de ambos os lados vai contra a democracia, as instituições. Como elas estão mesmo enfraquecidas e podres, as meias-verdades ganham contornos de verdades absolutas e inquestionáveis. Do lado esquerdo, a prisão de Lula e o impeachment de Dilma foram “golpes das elites”, que não toleram um líder popular. Do lado direito, as urnas eletrônicas são completamente manipuláveis e o establishment controla cada detalhe eleitoral, logo, o resultado das eleições não será legítimo. A menos que dê Bolsonaro, claro.
Se o indivíduo tece alguma crítica ao candidato, não pode ser um patriota, alguém que quer o melhor para o Brasil. Só pode ser um vendido, um traidor. Figuras que até ontem eram ícones da “nova direita” se transformam, quase da noite para o dia, em comunistas infiltrados, traidores, vendidos. Foram comprados pelo sistema, corrompidos, só pode! É a postura de quem demanda total adesão, pois daqueles 1% de discordância pode nascer uma “igreja” nova…
Golpe de um lado, golpe do outro, e quem vai morrendo aos poucos é a própria democracia, sempre imperfeita, bastante capenga em nosso caso. É perfeitamente compreensível o desânimo com nossa democracia, mas será que o caminho é mesmo um regime autoritário “do bem”? Que à esquerda sempre se pregou algo assim nós sabemos. Mas é lamentável ver a quantidade de gente que se diz conservadora pregando um caminho semelhante.
A eternidade, a perfeição será sempre imaginária, enquanto o real será sempre corrupto, finito. O homem, sonhando com a imortalidade imaginária, irá considerar corrupto tudo aquilo que representa um obstáculo a este ideal. O sacrifício destes “corruptos” parecerá um preço pequeno a se pagar em nome de uma salvação coletiva eterna. Para criar o paraíso terrestre de justiça, o que são algumas cabeças enforcadas pelo Terror de Robespierre?
A Revolução Francesa tinha um tom messiânico: ela iria moldar o novo homem, devolvê-los sua “virtude primária”, salvá-los da corrupção. E seu líder era ninguém menos que o Incorruptível. Quem vai ligar para algumas mortes quando a pureza de Robespierre está por trás das ordens? Não podem ser inocentes, pois o próprio líder é o povo, e o povo não pode estar errado; a vontade geral é a vontade de Deus!
Como o universo dos incorruptíveis é imaginário e, portanto, nulo, conclui-se que o universo dos corruptos abrange a totalidade dos homens. Exceto, naturalmente, os Incorruptíveis, ou aqueles que nisso acreditam. Esses são as verdadeiras ameaças. Para eles, quem quer que faça críticas ao seu líder não pode mais ser considerado um “fiel patriota do bem”, tem que ter pulado a cerca para o lado do inimigo. Alexandre Borges resumiu bem os passos dos revolucionários:
1) “Juntem-se à minha revolução, ela é diferente das outras!”
2) “As elites que se cuidem! O povo acordou!”
3) “Não se faz omelete sem quebrar alguns ovos.”
4) “Desvirtuaram meus ideais, havia traidores infiltrados.”
5) “Não sou uma pessoa, sou uma idéia. A história me julgará.”
A mentalidade revolucionária, que transforma política em religião, está por trás da imensa maioria das desgraças históricas. Mas os fanáticos não querem parar para refletir, pois são movidos por ressentimento, medo, idealização – do futuro, no caso dos comunistas, ou do passado, no caso dos fascistas reacionários. O inimigo mortal de ambos é o indivíduo autônomo, que ousa pensar por conta própria, desconfiar de projetos utópicos, manter o saudável ceticismo com qualquer liderança política.
Esses, à medida que criticam os excessos do “seu” lado, acabam sendo colocados pelos ex-aliados no campo do inimigo, como se fossem espiões infiltrados ou traidores vendidos. Um a um, os nomes vão sendo cortados do rol de ícones do movimento, e passam a configurar a lista negra dos adversários que devem ser eliminados. Stalin mandava apagar das fotos antigas os camaradas que viraram traidores. A frota reacionária vai apagando os elogios intensos de ontem, para colocar em seu lugar xingamentos toscos, chulos.
Até restarem somente aqueles que estavam 100% certos desde o começo, ainda que tenham mudado de opinião várias vezes no decorrer do tempo. Coerência pra quê, se há a fidelidade fanática ao líder? Até o momento em que o próprio líder deve ser degolado também, claro, pois mesmo ele se corrompeu e debandou para o lado dos inimigos, pedindo cautela e moderação a uma turba descontrolada. Ele era apenas uma ideia, não uma pessoa de carne e osso, falha, corrupta…
Rodrigo Constantino
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