Por Lucas Berlanza, publicado pelo Instituto Liberal
Em defesa de uma mesma causa ou de princípios e objetivos similares, abordagens e personalidades diferentes podem e devem tomar sua parte. Talhado pela cultura brasileira e, particularmente, pela cultura carioca, meu esforço maior sempre foi no sentido de uma orientação política que repudiasse o vira-latismo (tão bem denunciado por Nelson Rodrigues), também ele sintoma das doenças do Brasil, e que cultivasse o sentimento patriótico, almejando o entendimento preciso da nossa realidade para reconhecer que há algo de bom por que lutar.
Em seu novo livro, Brasileiro é otário? – O alto custo da nossa malandragem, o economista e colunista Rodrigo Constantino, presidente do Conselho Deliberativo do Instituto Liberal, faz um trabalho em certa medida oposto, mas igualmente necessário: o de fustigar o que, no meio do caminho da nossa formação como sociedade, ficou transviado da rota do saudável e do equilibrado. O livro, embora nos chame a atenção sua passagem por essa seara, não se pretende um tratado sociológico; o tempo inteiro ele é uma provocação violenta, uma agulhada insinuante, necessária – ainda que dolorosa -, no que para alguns seria característico da nossa identidade: o “jeitinho brasileiro”, o “estilo malandro”, a ânsia por descumprir limites e normas para conquistar vantagens e atalhos.
Constantino compara o gesto de apontar o dedo para essa ferida com o ato do pai que, mesmo amando seu filho, deseja livrá-lo, por exemplo, do mal das drogas. Amá-lo, e devemos amar, não pode ter outra consequência que não a de desejarmos o melhor para ele. Assim o patriota deve se sentir em relação ao seu país. “Patriotismo”, elucida o autor, “não é fechar os olhos para nossos males; ao contrário: é enfrentar os desafios que se apresentam em nome de um país melhor”.
O patriotismo não está, obviamente, naquele que “endossa um pessimismo crônico, um fatalismo torpe, fruto de um complexo de vira-latas que trata tudo que é nacional como se lixo”; contra esses eu costumo me voltar particularmente, em especial porque, entre os chamados conservadores e liberais, paradoxalmente há muitos, deixando o caminho livre para que a esquerda se identifique com o sentimento de patriotismo no imaginário popular. Balela; o que ela representa mesmo no país, em geral, historicamente, é o outro lado da doença brasileira: o do “nacionalismo boboca, ufanista, que só lhe permite enxergar coisas boas e o faz rebater toda crítica como se de um inimigo”. A nosso ver, combater a primeira postura é lutar para qualificar o remédio contra a doença, pois o vira-latismo funciona como uma verdadeira sabotagem; combater a segunda é impedir a cegueira e permitir a identificação do agente patógeno. É este último trabalho que Constantino entendeu por bem realizar.
Dividindo em quatro partes, o livro inicia questionando as origens do “jeitinho brasileiro”, as origens desse desprezo pelas normas e pelo caminho correto. O autor não deixa de reconhecer um potencial valor na nossa afetividade e nos aspectos de descontração do nosso jeito de ver o mundo – ele faz menção, por exemplo, aos costumeiros encontros e cumprimentos calorosos dos brasileiros no estrangeiro, mesmo que eles jamais se tenham visto na vida e jamais se vejam de novo.
Admite também que “a interculturalidade, por exemplo, fruto do grande melting pot que é nosso país, um caldeirão de etnias, pode ser grande trunfo em um mundo com choque de povos e religiões”. Ainda, “a flexibilidade e o jogo de cintura podem ser formas adaptativas interessantes se não descambarem para a malandragem e o jeitinho”. Constantino pontua, porém, que a coisa saiu dos eixos e nos levou a um “tribalismo” arcaico, afastando-nos desagradavelmente da impessoalidade do conceito do império das leis, constante do liberalismo clássico.
Para esse tipo de postura, se somos todos uma “grande família”, o “tio” do caixa do restaurante, o “chapa” do táxi ou o “amigo” da fila do supermercado podem sempre “dar um jeito” para que seus “parentes” desconhecidos não precisem se submeter aos processos que são esperados das outras pessoas. Por outro lado, essa mentalidade, em termos de economia global, se torna “deletéria”, porque “leva ao fechamento, à desconfiança em relação aos ‘outros’, aos que não pertencem à tribo, e que, portanto, devem querer nos explorar, nos destruir”. Por isso, entre nacionalistas e socialistas do Brasil, nasce a postura antiamericana e supostamente anti-imperialista que nos mantém entre as economias mais fechadas do mundo.
O desenvolvimento do “jeitinho” e do culto ao “malandro”, se não unicamente, tem a ver, como Constantino elucida, com a forma como nossas instituições se organizaram, frágeis, submetidas a todos os tipos de pressão, presas de sistemas viciados e vítimas, sobretudo após o golpe republicano, de uma série de rupturas violentas. Porém, na maior parte do tempo, pesadas e ineficientes, atolando o cotidiano do brasileiro de “regras” – muitas delas inúteis, injustas ou que simplesmente “não pegam”. O “jeitinho”, de certo modo, se tornou um mecanismo de adaptação e “sobrevivência” no terreno hostil, e os “espertos” passaram, ao empregá-lo sistematicamente, a prevalecer sobre aqueles a quem Constantino, incluindo-se no grupo, chama de “otários” – os cidadãos decentes que procuram abrir mão desses truques para preservar o seu caráter.
A lei Seca e a continuidade dos acidentes, o culto ao “coitadismo”, a exaltação a heróis tortos como Macunaíma e Lula, a glamourização da favela, a dificuldade em mexer na Previdência social, as bravatas do sindicalismo e o orgulho vazio do slogan “O Petróleo é nosso” são algumas das distorções que criaram terreno no Brasil e Constantino analisa como subprodutos dessa doença do “jeitinho”, do Estado nacional obeso e sua consequente quebra de padrões e de referenciais de valores.
Os grandes trunfos do livro, aparentemente na opinião do próprio Constantino, estão, porém, nas suas duas últimas partes. A primeira, uma comparação que, residindo na Flórida há algum tempo, ele pôde fazer entre a maneira de encarar a sociedade, as regras e as instituições nas duas culturas. A última, uma análise, com base em dados numéricos e estatísticos, do fracasso do modelo de organização e dos efeitos da ode ao “jeitinho” nos índices nacionais. Constantino faz sua análise culminar numa crítica às elites, aos formadores de opinião, intelectuais e líderes financeiros e empresariais, como muito mais culpados do que o resto do povo do país pelo estado de coisas – algo com que, por exemplo, Carlos Lacerda já concordava nos anos 60.
Reprovo todo tipo de crítica que, mais do que dura ou carregada de hipérboles, vai às raias do destrutivo e não pretende colaborar; fico feliz em dizer que não é o caso deste trabalho do Rodrigo Constantino. A leitura é totalmente válida, mesmo que ela possa nos fustigar e incomodar; o propósito é esse.
Mais para o final, Rodrigo se pergunta: “dá para ter orgulho de ser brasileiro?”. Tento responder: estamos muito aquém do que poderíamos ser e enfrentando uma das fases mais negativas da nossa história. Temos qualidades, o autor sabe disso, e, embora vazadas para fora do recipiente, elas ainda estão aqui. O patriotismo tem muito mais a ver, essencialmente, com amor do que com orgulho; realmente não estamos tirando nota 10 nas provas mais importantes para podermos bater palmas para nós mesmos. Precisamos, pois, nos reformar; só o faremos a contento, porém, mobilizando as nossas potências internas, incluindo nesse bolo o que temos de melhor, a fim de sufocar as nossas misérias.
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