Por Hiago Rebello, publicado pelo Instituto Liberal
Eu não vivo em um lugar pacífico. Devo dizer que a maioria dos brasileiros também não vive. Ter um vizinho traficante, assaltante ou mesmo homicida não é uma raridade para o brasileiro. Ver, não pela televisão, mas com os próprios olhos, ao vivo, a influência que traficantes armados têm sobre uma família, onde eles exercem autoridade, força e presenças marcantes, não é nada incomum.
O que ocorre no nosso país é a proliferação maciça de corpos violentos dentro das sociedades brasileiras. Quando um grupo criminoso, armado, se apodera de uma região, a influência de poder que tem acaba desaguando numa nova moralidade, em novos esquemas de poder e ação. A moral do bandido, do assassino armado, serve para resolver querelas familiares, problemas entre clientes e lojistas, empregados e patrões.
Pela presença, pela força e, mais ainda, pela integração que têm com o local (os criminosos não deixam de namorar, casar, ter filhos, sogros, primos, sobrinhos etc.), as facções criminosas e seus membros ganham legitimidade para exercer seus poderes. Esqueçam-se da lei, da (piada da) Constituição, do poder dos juízes. Quem faz a Lei é quem detém a espada. A força jurídica e legal do Brasil só consegue se impor em tais locais com o uso de força letal, quando esta ultrapassa a das facções presentes num determinado bairro, favela, rua.
Duvidam? A lei estatal, uniformizada, centralizada e igualitária, só conseguiu ser realmente implementada por certos países no século XIX, em outros, apenas no XX. Como a lei conseguiu ser implementada? Pela força. Antes da força da lei, grupos menores, infinitesimais se comparados com as forças de nobres, reis, do Parlamento, de Estados inteiros, faziam suas próprias leis.
No Ocidente Europeu de poucos séculos atrás, por exemplo, havia os charivaris. Estes consistiam em atos públicos realizados para “comemorar” casamentos. Nos séculos XVII, XVIII e XIX, de fato, a presença do Estado era incrivelmente pequena, se comparada a hoje; não havia justiça uniformizada (em muitos países isso só foi ocorrer no século XX), centralizada e organizada, podendo existir até mesmo tribunais concorrentes dentro de um reino.
A força da lei era diluída num mar de particularidades regionais, com cada cidade, parlamento e nobre tendo seu jeito de gerir as coisas. Não era, de fato, uma anarquia; contudo, esse cenário, antes da ascendência do Estado de Direito, era o ideal para forças culturais (grupos) exercerem seu poder. Os charivaris não eram apenas “comemorações”, mas uma verdadeira chantagem aos recém-casados. Especialmente cruéis com esposos e esposas conhecidos por suas aventuras sexuais, ou viúvos que queriam ter um segundo, terceiro, ou mais casamentos, o charivari agredia a vida pública e “privada” desses indivíduos.
Poderia ser apenas uma brincadeira de jovens “promíscuos” contra um casal recém-casado, ou uma humilhação pública sem precedentes, com ovos, frutas podres, fezes e vaias de centenas de pessoas contra os casados, caso não quisessem contribuir com as bebedeiras dos jovens[1].
Juntamente com o charivari, havia o Asouade: um evento que servia para raptar, colocar montado em um asno e desfilar um homem que apanhasse da esposa, ou que fosse submisso para com a própria mulher; também ocorriam contra mulheres, assim como poderiam ser comemorados utilizando outras pessoas, ou bonecos, representando os indivíduos ridicularizados pelo povo.
Esses eventos eram organizados por parte da juventude, que gostava de beber em excesso, promover orgias em determinadas casas, calotear, roubar, tinham o vício do jogo… E eram não apenas tolerados pela população, como também tinham sua conivência. Parte dos jovens da Idade Moderna e do início da contemporânea gostava de criar encrenca e confusões, espancar desafetos, matar, invadir casas, pregar peças no meio da noite, gritando que a cidade estava em chamas[2]…
Mas esse controle que certos jovens burgueses e libertinos tinham, além dessa conformidade da população, acabaram. Por que acabaram? Porque o Estado se impôs, imperou ante a pluralidade de justiças e decretou normas de conduta pública mais rígidas, com ações mais eficazes e severas para seus contraventores.
A espada da Justiça, agora uniforme, foi usada para reprimir essas gangues de jovens baderneiros, incendiários, que por muitas vezes atiravam com pistolas dentro de igrejas, faziam barreiras em ruas, raptavam e humilhavam homens e mulheres em público. Uma nova moral, um novo senso de deveres, se impôs nos séculos passados.
O Estado e seu sistema de Justiça, de normas e condutas, se colocaram acima, em termos de força, poder, na sociedade. Assim ele se legitimou para a população, assim sensos de ordem pública foram estabelecidos.
Isso não foi em um período de ditaduras, de governos autoritários. Foi no emergir do Estado de Direito, no século XIX, que a repressão contra os badernistas se fez mais eficaz.
Olhemos para o Brasil: um país tomado por grupos armados, sem (ou com muito pouco) senso de Justiça, decência… Eles mandam em certas áreas, fazem de sua conduta o exemplo para quem vive onde agem, coagindo e obtendo a conformidade de uma parte considerável dos moradores da área.
Se os Estados do século retrasado foram eficientes e justos ao conter essas gangues agitadoras, conseguindo modificar a moral e, portanto, os laços de interação e legitimidade entre a população das cidades e dos campos, cabe a pergunta: por que não admitir uma alta repressão no Brasil?
Os criminosos estão criando governos paralelos no nosso país, usando de força, moral para criar relações comunitárias e imperar sobre determinadas regiões. Não o fazem com gentileza, seriedade, razão, mas para controlar econômica e socialmente o povo que os envolve, com violência, ameaças, morte, ferimentos e traumas pesados. Como se resolve caso um grande traficante é um estuprador? Não há polícia, não existe juiz, promotor… As Instituições da Democracia só existem em uma imagem distante e risível perto destas áreas afetadas.
E essa influência criminosa só cresce. Cidades (como a minha, aliás) que, há dez anos, eram pacíficas, quietas, tranquilas, hoje dormem sob o som de tiros de fuzis, quando facções rivais decidem entrar em guerra. Partes das cidades ficam restritas a certos moradores, o comércio é afetado negativamente e, muitas vezes, toda a população de uma cidade pode ficar a mercê de um grupo armado invasor.
A repressão, e alta repressão, vinda do Estado seria injusta? Seria um exagero e deveria ser vista com temor, caso resolvesse atuar nacionalmente, com a força necessária (que precisaria da atuação de todas as Forças Armadas) para restaurar a ordem pela espada?
Creio que o Estado brasileiro já deveria ter feito isso há tempos.
[1] FABRE, Daniel. Famílias. O privado contra o costume. IN: CHARTIER, Roger (org). História da Vida Privada. Da Renascença ao Século das Luzes. 1ª ed., São Paulo: Companhia de Bolso, 2009, p. 523-526.
[2] Idem, 530-556.
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