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Caritas: o legado moral do cristianismo

Domingo de Páscoa, lá vou eu falar sobre o legado moral de Cristo. Meu ateísmo não me impede de enxergar alguns fatos. Pagãos no passado foram obrigados a reconhecer que “algo diferente” surgia daquela seita de seguidores do judeu que morreu na cruz. Essa principal diferença era sua propensão à caridade, a forma aparentemente desinteressada com a qual ajudavam o próximo, mesmo aquele de outra seita.

Tomo como base o capítulo “Como a caridade católica mudou o mundo”, do ótimo livro já citado aqui de Thomas Woods, Como a Igreja Católica construiu a Civilização Ocidental. Woods mostra como essa inclinação à caridade chamou a atenção até mesmo de críticos ou inimigos dos católicos, como Volaire, o escritor pagão Luciano e Martinho Lutero, em épocas bastante diferentes.

Os estóicos já enalteciam, de alguma forma, a ajuda ao próximo, mas nada se compara ao que veio com o advento do cristianismo. Afinal, a sabedoria, para o estoicismo, envolvia certa indiferença em relação ao próprio sofrimento, o que era naturalmente estendido ao próximo. Diante da dor, sua ou de outro, o estóico deveria mostrar-se superior, o que levou alguns famosos membros do estoicismo a posturas que veríamos como monstruosas hoje, como a reação de Anaxágoras ao saber da morte do seu filho: “Eu nunca pensei que tivesse gerado um imortal”.

Sêneca, um dos romanos mais sábios de todos, assim se manifestou sobre a piedade: “O sábio poderá consolar aqueles que choram, mas sem chorar com eles; socorrerá o náufrago, dará hospitalidade ao proscrito e esmolas ao pobre […], restituirá o filho à mãe em prantos, salvará o cativo da arena e até mesmo enterrará o criminoso – mas em toda a sua mente e no seu semblante estará igualmente imperturbável. Não sentirá compaixão. […] Só os olhos doentes se umedecem ao verem lágrimas em outros olhos”.

Os cristãos mudaram isso. Após seu avanço, o doente passou a ser aquele que não chorava junto, que não molhava os olhos ao ver a desgraça alheia. O novo mandamento de Jesus Cristo, afinal, era claro: “Assim como eu vos amei, amai-vos também uns aos outros”. Uma meta um tanto difícil, quiçá utópica, mas que serviu como um norte para seus seguidores, um objetivo que permanentemente os lembrava de que somos todos iguais, universalizando a caridade. É o que irmãos fazem.

O resultado prático disso foi que os primeiros hospitais, como os conhecemos, foram provavelmente criados pela Igreja. No século IV, a Igreja começou a patrocinar a fundação de hospitais em larga escala, de tal modo que quase todas as principais cidades acabaram por ter o seu. Casos como o dos hospitalários de São João ficaram conhecidos e se espalharam pela Europa.

Os mosteiros medievais tiveram grande papel na caridade, e sua dissolução, no século XVI, levou “a uma drástica redução das fontes de caridade”, segundo o pesquisador Paul Slack. O mesmo aconteceu após a Revolução Francesa, cujo ataque à Igreja abalou a fonte de inúmeras boas obras. Em 1847, a França já contava com quase 50% a menos de hospitais do que no ano do confisco pelos jacobinos.

Que o leitor não se engane: sou um economista liberal, admirador de Adam Smith, e entendo perfeitamente que não é da benevolência do açougueiro que temos carne para comer no jantar. Como alguém que leu toda a obra e escreveu um livro sobre Ayn Rand, também compreendo a importância da “virtude do egoísmo”. O inferno está cheio de boas intenções, e elas sem dúvida não bastam para criar um mundo melhor.

Basta pensarmos na questão da usura, sempre condenada pela Igreja. Ora, depender de empréstimos apenas com base na caridade seria limitar totalmente o mercado de crédito, punindo os mais pobres. O juro é o preço do capital, e a impessoalidade do mercado é sua grande vantagem: não precisamos apelar para os sentimentos para obtermos resultados favoráveis a todos.

Dito isso, não resta dúvida de que um mundo com mais é melhor do que um mundo com menos caridade. Sem atos de caridade a situação seria ainda pior. Afinal, sempre haverá aqueles que ficaram para trás, os necessitados, os carentes, e é louvável o ato de ajudá-los voluntariamente, sem nenhum interesse imediato nisso. Fazer o bem porque isso é bom, sem alarde, sem propaganda, sem esperar nada em troca além da sensação de que ajudou o próximo por empatia.

O que nos leva a questionar os efeitos não só econômicos, mas também morais do welfare state. O Estado de bem-estar social, ao estatizar a caridade, tornou-a compulsória, uma obrigação legal, transformando-a em dever em vez de direito. Isso não foi sem consequências para a própria caridade e para aqueles que a recebem. Muitos passaram a ver como um direito garantido o recebimento de todo tipo de ajuda, ignorando que isso implica no dever de terceiros trabalharem para sustentar tais benefícios. E os cidadãos que já são forçados a pagar pesados impostos se sentem livres da responsabilidade moral de ajudar (ainda mais) o próximo.

O mundo é melhor quando há mais caridade. Mas esta jamais pode ser obrigatória, sob a mira de uma arma. Não há escolha nesse caso. Portanto, não há moralidade. Vale notar que os países mais capitalistas, como os Estados Unidos, são também os mais caridosos e filantrópicos. Ricos empresários doam fortunas para a caridade. O cristianismo teve sua parcela nesse legado moral, sem dúvida.

A tentativa por parte dos socialistas de usar o estado, ou seja, a força para impor tal ato nobre simplesmente anulou qualquer nobreza nele, além de gerar resultados diametralmente opostos àqueles desejados. Solidariedade sim, mas sempre voluntária. Como o próprio Jesus Cristo defendia.

Rodrigo Constantino

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