A base intelectual do bolsonarismo sempre demonizou o globalismo, e com boa dose de razão. Globalismo não é globalização, como já tentei explicar nesse vídeo. Globalismo é uma espécie de globalização “administrada”, ou seja, está para a globalização como o “capitalismo de estado” está para o livre mercado.
Dito isso, no mundo real nunca houve ou haverá um livre mercado pleno, sem qualquer tipo de intervenção do estado. O mesmo vale para a globalização: órgãos supranacionais com certas regras parecem inevitáveis. A discussão séria costuma girar em torno do grau, evitando os extremos “puristas”.
Nesse sentido, o governo Bolsonaro, ao fechar um acordo entre Mercosul e União Europeia, adotou o pragmatismo em troca desse idealismo purista. Bom para o Brasil, ao que tudo indica. Mas não deixa de expor o duplo padrão dos mais fanáticos bolsonaristas, como apontou Flavio Quintela.
Governar é escolher prioridades, saber ceder, contemporizar. Foi isso que fez o governo no âmbito externo, por meio de sua diplomacia. Articulou com a UE, mesmo tendo de engolir um Acordo de Paris “globalista”. Por muito menos o Partido Novo foi massacrado por olavistas no passado. Falta coerência, justamente porque falta realismo.
O mesmo tipo de pragmatismo é cobrado no âmbito doméstico. A prioridade é a reforma previdenciária, e para aprova-la é fundamental uma boa articulação com o Congresso. Mas os bolsonaristas criaram a ideia de que articular é praticar corrupção, de que ceder, contemporizar, aceitar contrapontos e entubar alguns custos seria algo inaceitável.
O bolsonarismo investe contra o pragmatismo quando o assunto é reforma, o que é um grande erro. Faz pior, na verdade: demoniza qualquer concessão ao “centrão”, mesmo que legal, enquanto faz vista grossa para as concessões de Bolsonaro a grupos de interesse de sua base eleitoral, como os policiais. Pragmatismo seletivo, e retórica “jacobina” quando interessa.
Marcos Troyjo, do Instituto Millenium e secretário escalado por Paulo Guedes, foi um dos responsáveis pelo acordo, e mostra em entrevista como foi crucial o pragmatismo definido pelo próprio presidente:
O presidente disse: “Vamos fazer negócio com todas as partes do mundo sem viés ideológico”. Se tem uma coisa que marcou o Mercosul durante bastante tempo, foi o seu viés ideológico. O Mercosul, durante esse período Kirchner e Dilma, deu opiniões sobre processo de paz no Oriente Médio, sobre Crimeia, se os fundos abutres eram uma ameaça ao sistema financeiro internacional. E integração logística? E integração de aduanas? A gente não fez.
Não importa a cor do gato, desde que ele pegue o rato. O dilema entre princípios rígidos e resultados concretos será inevitável num governo, na vida, e quem pretende ser estadista terá de saber caminhar nessa linha tênue que separa ambas, sem cair de vez para um lado. Ideologia demais prejudica. Não por acaso a ala ideológica do bolsonarismo tem sido a responsável pelos maiores problemas.
Troyjo reconhece que os desafios internos são os principais, e eis onde está faltando mais pragmatismo e realismo por parte do bolsonarismo:
Os acordos comerciais, os acordos econômicos, não são resposta para todos os males. Não são uma panaceia. Se você faz acordos comerciais, mas não faz reformas modernizantes internas, não terá o efeito desejado. E, nesse sentido, e essa mensagem que eu quero deixar, é que o grande acordo comercial que o Brasil tem que fazer é com ele mesmo. Se não melhora o ambiente de negócios, se não faz reforma tributária para tirar o ônus de quem está empreendendo, se não vai progressivamente melhorando a capacidade de logística, não dá certo. Com a reforma da Previdência, você diminui o custo de capital, melhora perspectiva, liquidez. Vai ter injeção de capital na Bolsa de Valores.
O editorial do GLOBO de hoje também comenta sobre as concessões feitas por Bolsonaro para fechar o acordo, elogiando seu pragmatismo:
O teste do choque com a realidade é sempre pedagógico, desmascara qualquer discurso irreal. A vociferação do presidente Bolsonaro, na campanha e depois de eleito, contra a preservação do meio ambiente enfrentou contestações quando o ex-capitão foi alertado por representantes do agronegócio, o segmento mais dinâmico da economia brasileira, que relaxar na preservação significa causar prejuízos sérios às exportações de alimentos, em que o Brasil é um dos líderes mundiais.
[…]
Precisa ser reconhecido o pragmatismo do governo Bolsonaro, que, na prática, engaveta o antipreservacionismo, em nome de um tratado de comércio capaz de alavancar o crescimento da região. Mais do que isso, promoverá a expansão interconectando as economias locais a cadeias globais de produção, necessário para o Brasil, por exemplo, modernizar a indústria e diversificar a pauta de exportações, muito dependente de produtos primários.
Em que pese a concordância do jornal com a pauta ambientalista, algo de que não compartilho, ainda assim é correto reconhecer a vantagem do pragmatismo. Não há alternativa concreta no mundo real da política, seja na geopolítica, seja na política interna.
E para não me acusarem de implicância com o bolsonarismo, a mesma crítica vale para o Partido Novo, que possui uma ala mais idealista sem muito elo com a realidade. O suposto embate que tem ocorrido entre o governador eleito de Minas Gerais e a cúpula do partido mostra essa dificuldade: quem tem de governar de fato quer fazer mais concessões do que aceita quem está de fora, de olho no longo prazo, preservando a imagem de pureza da sigla:
Estreante à frente de um governo estadual, o Partido Novoviu os seis primeiros meses da gestão de Romeu Zema em Minas Gerais produzirem tensões entre um discurso de renovação política e a busca por composição com outras forças. Zema já enfrentou discussões internas no próprio partido por recuos em promessas de campanha, marcada por uma rejeição à chamada “velha política”.
Zema se aproximou de deputados que passaram por governos anteriores, do PT e do PSDB, em busca de governabilidade na Assembleia Legislativa. A atitude foi alvo de debates no Novo, que vê em Minas Gerais um laboratório de gestão. Zema teria se irritado, segundo fontes ouvidas pelo GLOBO, com o que avalia como uma “tutela” do presidente do partido, João Amoêdo. Ambos, porém, negam qualquer desentendimento.
É um dilema justamente porque não tem resposta fácil. Até onde sacrificar a pureza dos princípios em prol dos resultados? Depende muito. Mas o que parece claro é que os extremos são as piores escolhas aqui. O ultra-principialista que não aceita ceder sequer uma vírgula para manter sua pureza, e o consequencialista totalmente amoral que só pensa em resultados e não se importa com os meios, ambos soam radicais demais e não costumam conviver bem com a realidade imperfeita.
No meio do caminho há espaço para os seres humanos de carne e osso, imperfeitos, que fazem decisões difíceis, que buscam coerência nos princípios, com algum jogo de cintura para definir prioridades e saber ceder quando preciso. Se negociar com a UE globalista e engolir o Acordo de Paris é algo tolerável ou mesmo motivo de celebração para o bolsonarismo, então liberar emendas parlamentares e conversar com Maia e sua turma não pode ser esse caos todo, algo completamente inaceitável, não é mesmo?
Rodrigo Constantino
Eleição sem Lula ou Bolsonaro deve fortalecer partidos do Centrão em 2026
Saiba quais são as cinco crises internacionais que Lula pode causar na presidência do Brics
Elon Musk está criando uma cidade própria para abrigar seus funcionários no Texas
CEO da moda acusado de tráfico sexual expõe a decadência da elite americana
Inteligência americana pode ter colaborado com governo brasileiro em casos de censura no Brasil
Lula encontra brecha na catástrofe gaúcha e mira nas eleições de 2026
Barroso adota “política do pensamento” e reclama de liberdade de expressão na internet
Paulo Pimenta: O Salvador Apolítico das Enchentes no RS