Se nossa nação está sob ataque, então se justificam diversas ações mais autoritárias do governo. Afinal, é uma questão de vida ou morte. Durante a Segunda Guerra Mundial, o governo americano cometeu todo tipo de abuso de poder, ou ao menos assim seria considerado em tempos normais de paz. Pelo grau de risco envolvido numa guerra, os cidadãos acabam aceitando a suspenção temporária de certas liberdades individuais, em prol do coletivo – e de salvar a própria pele.
É justamente por compreender isso que defensores de um governo maior e mais poderoso adoram usar metáforas de guerra. A guerra contra a pobreza, a guerra contra as drogas, a guerra contra o crime, a guerra contra as desigualdades, a guerra contra as mudanças climáticas, a guerra contra a degradação moral. Se é uma guerra, implícito está que é tudo ou nada, que devemos fazer vista grossa ao avanço do Estado sobre nosso bolso e nossas liberdades.
O segredo do autoritário, da esquerda à direita, é vender um caos iminente, uma catástrofe prestes a ocorrer, para que possa oferecer como solução uma fórmula simplista e, claro, autoritária. Serve tanto para o aquecimento global dos ecoterroristas como para a degradação moral da sociedade, apontada por conservadores. Essa ao menos tem a vantagem de ser real, o que não valida o pessimismo exagerado e os métodos pregados pelos reacionários.
Se estamos em guerra, podemos tolerar a morte até da verdade como princípio. Se vivemos em uma batalha de vida ou morte, então não temos mais adversários políticos, que divergem de nós quanto aos meios, mas sim inimigos mortais a serem eliminados. A “guerra cultural”, cuja existência não nego, serve a tal pretexto: de ambos os lados vemos radicais pregando que determinados princípios devem ser abandonados em nome da vitória, a única meta que importa.
O monopólio da virtude se segue: apenas o nosso lado tem boas intenções, sendo o outro lado movido por objetivos malignos. A esquerda tem sido mestre na arte dessa estratégia, o que não isenta certos grupos da “direita alternativa”. Joe Biden, que deve concorrer pelo Partido Democrata nas primárias de 2020, fez um elogio simples ao vice-presidente republicano Mike Pence, afirmando que se trata de alguém decente. A reação foi tão forte que Biden apagou a mensagem, e insinuou covardemente que um religioso cristão como Pence, de fato, não poderia ser muito decente, já que não endossa a agenda LGBT.
Quando um democrata não pode nem sequer reconhecer publicamente que um republicano é uma pessoa decente, então chegamos a um grau de polarização doentio, extremamente prejudicial à democracia. A radicalização tem sido crescente de ambos os lados. O “novo rosto” dos democratas, Alexandria Ocasio-Cortez, apresentou seu projeto de Green New Deal: uma aberração que mistura stalinismo com utopia infantil. Não obstante, a mídia “progressista” elogiou sua ambição e sua suposta boa intenção, e quem ousasse fazer perguntas era um insensível que não ligava para o aquecimento global.
Já do lado republicano, o presidente Trump adota emergência nacional para uma questão que é delicada, mas não emergencial, e ainda faz um discurso de que o receio com o precedente aberto não precisa ser muito grande – primeiro, porque os democratas vão sempre abusar do poder de qualquer forma; segundo, porque a solução é simples: basta ele ser reeleito. E um comentário desses recebeu aplausos efusivos de conservadores que deveriam estar mais preocupados com a solidez institucional e os preceitos constitucionais do que qualquer outra coisa.
É a ótica do “vale tudo” pela vitória. O argumento é basicamente o seguinte: se o adversário ignora as regras do jogo, então também temos de fazer o mesmo. Há, claro, um ponto nesse raciocínio. Mas sem dúvida ele é extremamente prejudicial ao funcionamento da democracia e da própria sociedade. Como os Capuletos e os Montecchios de Shakespeare, ninguém mais sabe quem começou, e a violência vai escalando até tornar o ar democrático irrespirável.
No Brasil, uma ala do bolsonarismo, uma reação legítima ao petismo e ao estrago causado por décadas de “progressismo”, pensa exatamente dessa forma revolucionária. Não há mais espaço para soluções institucionais, alega, pois nossas instituições foram completamente corrompidas, incluindo a mídia. A única solução, portanto, é apelar para o jacobinismo e adotar a máxima de que os nobres fins justificam quaisquer meios. Um slogan marxista, diga-se.
E assim, como a missão é mais que nobre – nada menos que salvar a civilização –, então qualquer abuso do “mito” deve ser ignorado ou mesmo defendido, e seus deslizes toscos perdoados. A alternativa é a volta do PT, dizem. Se você criticar o governo, então está do lado do inimigo. A mentalidade tribal não permite nuances nem regiões cinzentas. Liberais que passaram a vida atacando o PT se tornam, da noite para o dia, “comunistas infiltrados”. Numa guerra, se você não está 100% comigo, só pode estar contra mim.
Os gastos com cartão corporativo aumentam, as estatais são mantidas, ministros trapalhões fazem trapalhadas, e ai de quem ousar tecer críticas, ainda que construtivas! O clima de guerra não permite isso. A virtude está somente em quem fica ao lado do presidente, demonstrando total lealdade. Os demais são uns idiotas úteis da esquerda, na melhor das hipóteses, que ainda não entenderam aquilo que o sofista de Virgínia explicou: estamos em guerra! E numa guerra não há tempo ou lugar para afetações burguesas com princípios e valores liberais…
Não nego que às vezes a situação será de guerra mesmo, claro. Mas não vivemos na iminência de um colapso da civilização. Ao menos nada que justifique um ambiente de guerra constante, interessante para governantes autoritários. Se há uma guerra que merece ser lutada, porém, é a das reformas, em especial a previdenciária. Bem que Bolsonaro poderia declarar guerra contra os privilégios do setor público. Mas ele prefere tuitar sobre “golden shower” no carnaval. Talvez o progresso seja uma guerra perdida, do ponto de vista dos liberais – e da população brasileira. Mas não faltará “like” nas redes sociais…
Artigo originalmente publicado pela Gazeta impressa
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