A coluna de Roberto DaMatta hoje no GLOBO fala sobre a decisão esdrúxula de fatiar nossa Constituição no julgamento do impeachment no Senado, algo inconstitucional e realizado por minoria simples. Ou seja, a típica malandragem brasileira. E é exatamente esse o enfoque dado pelo antropólogo, que estuda há décadas esse jeitinho nacional, câncer responsável por nosso eterno atraso. Diz ele:
O paradoxal espaço carnavalesco precisa do malandro. Esse herói dominante, dramatizado por Mário de Andrade, em 1928, em “Macunaíma”. Retomei o tema no livro que você não deve ter lido “Carnavais, malandros e heróis”, em 1979, quando estudei Pedro Malazartes como o modelo de todos os “sabidos”. Não seria ele o fundador do nosso populismo qual permanente fábrica de otários e inocentes úteis?
Somos todos “legalistas”, sobretudo na ilegalidade — quando usamos uma lei contra outra, o que, como estamos vendo à exaustão, leva ao assassinato do senso comum, obrigando a duvidar do real, mesmo correndo o risco de erradicar a vergonha e a honra. Fatiamos tudo. Até mesmo as normas, empurrando suas sobras para um outro colo. O resultado é a institucionalização da dúvida e da mentira como sagacidade no campo politico-moral. Quem não mente de cara limpa, quem não defende o indefensável é um otário. Ser malandro é saber “arrumar-se” e realizar tudo o que temos visto mais contundentemente a partir do mensalão e do petrolão, culminando — graças à Lava-Jato e a uma crise desmedida — com o afastamento da presidente.
[…]
Do mesmo modo, eu vejo a canalhice disfarçada de marxismo vulgar justificando a criação de uma autêntica “nomenclatura” e de um projeto político autojustificável porque nele está enfiada a palavra “pobre” como um conceito cristão, e isso suspenderia todos os juízos morais e todas as boas normas de competência.
George Orwell nos ensinou que guerra pode ser paz e que a mentira vira verdade. No Brasil, o “superior” não apenas mente — como é da índole dos que estão por cima — ele deve mentir. Primeiro, porque isso faz parte da ética de dominação aristocrática, onde existem os companheiros e os outros; depois, porque todos tinham a mais absoluta certeza da impunidade. E, na punição, haveria um recurso. Para os inferiores, porém, não haveria nuance ou condescendência. Haveria apenas o fato e a realidade da pena. Mas, para os “especiais” que “obram”, e obram em abundância, “nada pegaria.”
Se isso não é hierarquia e um resíduo aristocrático do tamanho de um rinoceronte, eu não seu quem sou. Se não podemos acabar com a malandragem, podemos ao menos pensar como essa lógica dúplice pode liquidar o Brasil. Afinal, deve haver um limite para a autodestruição.
O tema é abordado em meu novo livro Brasileiro é Otário? – O alto custo da nossa malandragem, onde DaMatta é citado algumas vezes. O Brasil é um país tão aristocrático – no sentido negativo do termo – que até apartamentos de classe média, com dois quartos, possuem dependência de empregada e elevador de serviço no prédio. Seria algo impensável para um americano, que tem a cozinha integrada à sala, elevadores comuns para todos e desconhece o conceito de dependência de empregado.
Brasileiro, no fundo, detesta a igualdade, aquela que importa, a de todos perante as mesmas leis. Uma ideia republicana, para enfatizar o dia de hoje, de nossa suposta independência. Aceitamos numa boa as gambiarras para que os poderosos se safem das leis, aquelas que só valem para os demais.
Tal igualdade é um valor liberal. Não deixa de ser irônico, portanto, ver a esquerda falando que defende os pobres, enquanto aplaude justamente a malandragem que livra os poderosos da punição por seus crimes. Descobrimos que, no Brasil da malandragem, a esquerda é a mais aristocrática: defende banqueiros, empreiteiros e políticos poderosos, mesmo à revelia da Constituição, que deveria ser a salvaguarda do povo.
Rodrigo Constantino
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