Talvez a característica mais marcante da esquerda seja seu esteticismo, sua obsessão pelas aparências, pela retórica, pelo discurso “bonitinho”. O desejo de acreditar em algum político populista que faça, em discursos, concessões ao “pragmatismo” é mais forte do que qualquer ceticismo saudável com base no histórico. O esquerdista é aquele sujeito doido para ser iludido – uma vez mais.
O caso de Obrador no México é sintomático. O cara é do Foro de São Paulo, tem em Maduro e Lula companheiros, em Chávez e Fidel Castro inspirações. É um nacional-populista de extrema-esquerda, que prega “igualdade” e condena o livre mercado. Um típico socialista tupiniquim. Mas nada disso importa. Ele será “pragmático” e vai respeitar a responsabilidade fiscal, diz o establishment. Ele será como Lula no primeiro mandato (e ignora-se o segundo).
Vamos usar o caso apenas do GLOBO, jornal carioca, mas isso pode ser extrapolado para quase toda a mídia. Logo de cara temos um escancarado torcedor, o comunista, digo, o colunista de ultra-esquerda Bernardo Mello Franco, que está festejando a vitória do extremista Obrador no México. Ele ainda quer que o caso sirva de inspiração para nossa esquerda:
E a esquerda venceu no México. Andrés Manuel López Obrador apresentou um programa nacionalista, declarou guerra à desigualdade e anunciou que governará “primeiro para os pobres”. Sua eleição já é histórica. Ao tomar posse, ele despejará os dois partidos que se revezam no poder há 89 anos.
O novo presidente imitou a guinada de Lula em 2002. Suavizou o discurso para conquistar a classe média e cortejou o mercado com a promessa de respeitar os contratos e manter o equilíbrio fiscal. Copiou até a ideia do “Lulinha paz e amor”, ao se reapresentar como “AMLOve”.
Ao festejar a vitória, ele chamou todos os mexicanos à “reconciliação”. Foi um gesto para distensionar o país e exorcizar o fantasma do autoritarismo. Na campanha, os adversários tentaram associá-lo aos regimes de Cuba e da Venezuela.
[…]
A mensagem de Obrador foi capaz de mobilizar um eleitorado que andava tão desiludido com a política quanto o nosso. Ele encerrou a campanha com um grande ato que lotou o estádio Azteca, algo quase impensável por aqui.
A esquerda brasileira se animou com a vitória, mas há muitas diferenças que a separam do exemplo do México. Obrador se elegeu por um partido novo, o Morena, e usou o combate à corrupção como mote de campanha. Nossas siglas de esquerda não se renovaram e ainda têm muitas contas a acertar no departamento da ética.
Também festejando, mas com mais timidez, temos a esquerdista Miriam Leitão:
Uma vitória indiscutível nas eleições de domingo deu ao México um rumo claro. O novo presidente, Andrés Manuel López Obrador (AMLO), não apenas ganhou por larga margem, como seu partido, Morena, conquistou a prefeitura da Cidade do México e a maior bancada nas duas casas do Congresso. O país fortaleceu a sua jovem democracia e fez um realinhamento partidário pelo voto.
Durante a campanha o discurso de AMLO foi ambíguo e com toques populistas e nacionalistas. Apesar da oposição de grande parte dos empresários, o mercado financeiro não mostrou especial estresse com a vitória que já era esperada. No seu primeiro pronunciamento, ele foi conciliatório do ponto de vista político e tranquilizador na economia.
[…]
Ele tem experiência como administrador. Foi bom prefeito da Cidade do México, que tem tamanho de país. Como gestor, foi fiscalmente responsável. Promete sê-lo ao administrar o país. Alguns empresários fizeram campanha contra ele e levantaram o fantasma de Hugo Chávez. O caso da Venezuela é específico. Nem a vitória esmagadora que teve nas urnas dará a López Obrador, ainda que quisesse, o poder de desmonte institucional que o chavismo empreendeu na Venezuela. O México sabe o que é ter um partido que se eterniza no poder, com eleições fraudadas. Não cometeria tal erro novamente.
Ambos os colunistas estão claramente contentes com o resultado, e alimentando boas expectativas para seu governo. Até mesmo o editorial do GLOBO, em que pese grau um pouco maior de ceticismo, demonstra enorme vontade de acreditar no tal “pragmatismo” do socialista radical:
A histórica vitória de Andrés Manuel López Obrador nas eleições presidenciais do México, com 53% dos votos, no último domingo, gerou expectativas dentro e fora do país, sobretudo devido à posição política de tendência esquerdista de Obrador.
[…] Observadores temem que Obrador reaja de forma radical às bravatas do vizinho do Norte, o que lhe valeu entre alguns analistas o apelido de “Trump” de esquerda. E, de fato, parte do eleitorado votou nele em reação à forma insultuosa como o titular da Casa Branca, desde a campanha eleitoral americana de 2016, vem se referindo ao México e sua população. Assim, foi positiva a forma apaziguadora adotada por Obrador em seu discurso de vitória, buscando o diálogo. O tom prudente evocou o Lula do primeiro mandato e, não à toa, ele também tem sido comparado ao ex-presidente brasileiro.
[…]
Os primeiros sinais vindos do México são de um presidente ideologicamente de esquerda, mas com faro pragmático. No campo político, ele soou como um populista radical na campanha eleitoral, com um certo ar autoritário, mas se comprometeu a preservar as instituições democráticas do país. Com respeito à economia, Obrador defendeu mais gastos sociais, sem abrir mão do rigor fiscal, seja lá o que isso signifique em termos de política de governo efetiva.
Tantas contradições e ambiguidades alimentam dúvidas sobre o futuro presidente. Porém, é preciso reconhecer que seu discurso da vitória foi um alento, ao apontar para a direção correta.
Reparem que a “histórica” vitória desperta muito mais empolgação do que receio no veículo de comunicação, tido pela extrema-esquerda brasileira como “de direita”. Não há um só colunista para afirmar que essa receita radical, sob o manto do pragmatismo, foi justamente o que destruiu o Brasil. Tampouco adianta procurar por Foro de São Paulo em reportagens, colunas ou editoriais: será em vão.
Obrador, apesar de “alguma dúvida”, produziu um estado de quase euforia no establishment midiático brasileiro, o mesmo que enxerga como sinônimo do apocalipse uma eventual vitória de Jair Bolsonaro no Brasil, ao lado do economista liberal Paulo Guedes. Obrador, que defende a ditadura cruel venezuelana, será um sujeito “pragmático” que apenas usou o populismo de esquerda para ser eleito, acreditam esses formadores de opinião “imparciais”.
Como ele venceu contra partidos tradicionais, é um “outsider” festejado, e seu populismo é chamado de “apoio popular” que garantiu sua vitória “histórica”. Mas se Bolsonaro vencer os partidos tradicionais brasileiros com amplo apoio popular, não esperem desses mesmos “analistas” uma conclusão similar: terá havido, no caso, um abuso de populismo para seduzir massas alienadas e ressentidas com a classe política. Um peso, duas medidas. A esquerda sempre terá o benefício da dúvida e a simpatia natural, por afinidade ideológica, dos nossos jornalistas.
Quando o México estiver mais perto de uma realidade venezuelana, essa mesma turma vai se fazer de desentendida e repetir que a esquerda foi “traída” e Marx foi “deturpado”. Alguns mais cafajestes vão tentar alegar que o governo de Obrador, no fundo, é fascista de direita, como fazem com a Venezuela hoje. E os alertas de liberais e conservadores serão novamente ignorados, para manter nossa maldição de Cassandra. Que preguiça…
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